2024
A AUSÊNCIA
texto de Alexandre Sá e Ana Tereza Prado Lopes sobre a exposição individual na Casa França Brasil (Rio de Janeiro, Brasil)
“As obras de arte são de uma solidão infinita: nada pior do que a crítica para as abordar. Apenas o amor pode captá-las, conservá-las, ser justo em relação a elas”
Rainer Maria Rilke
Conversando sobre o título desta exposição, depois de alguns nomes, eis que o artista anuncia: a ausência. Nós, confirmamos. Com o artigo? Sim. O artigo indica. Aponta. Desenha a presença de uma ausência. Para essa ocupação individual na Casa França-Brasil, Gustavo Speridião sintetiza seu trabalho como se fosse possível produzir no espaço e sem nostalgia alguma o sumo de tantos planos desenhados, tantas esperanças vividas e tanto trabalho coletivo. Militante. Dentro e fora do sistema de arte. Dentro e fora do espaço museológico do viver. Como em uma fita de Möebius.
Em imagens flutuantes, a gravidade nos lembra nosso momento e nossa condição: estarmos presos e livres por ela. Com um ritmo preciso, o trabalho de Gustavo Speridião coloca em suspensão qualquer oposição possível entre leve e pesado. Há, de fato, algo no ar. Sabemos que temos o chão como suporte. Elogio à queda. Capaz de capturar a devastação inevitável do mundo e seu fim intransponível, o artista jamais silencia a produção poética que se dá sem secar. Como a frutificação de um antídoto que atravessa a história (da arte) como presença viva e a memória como remanso.
O artista guarda em si um maneirismo encantado: com seus olhos vivos e graves, observa o mundo de maneira aguda e profética. E quando tais observações em palavras tornam-se sufocantes, liberta um riso ligeiramente tenso e profundamente encantado, como se se autorizasse a lembrar que o mundo é som, fúria e ficção. E que a duração do corpo é ínfima em relação ao tempo épico do próprio trabalho. Exatamente por isso, a finitude jamais surge como uma forca que só serviria para o espetáculo público. Mas seu avesso: a finitude como álibi e libertação.
Para essa ocupação, decidimos coletivamente evidenciar, para além do debate sobre o plano bidimensional, sua preocupação arquitetônica. A estruturação dos sintagmas da pintura estão presentes de forma mais objetiva através da escolha de um número reduzido de trabalhos que estabelecem um diálogo com a Casa França-Brasil e que exigem do espectador alguma deambulação. Tal deambulação é parte de um acordo silencioso entre o espaço expositivo, público e artista, para que apostem no mergulho em um silêncio ensurdecedor e comum que é parte da mínima existência nossa. Silêncio esse, nada silencioso. E que no caso (do trabalho) de Gustavo Speridião é máquina de guerra, ruminação e linha de ferro do desejo.
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2022
texto para a exposição individual "Manifestação Contra a Viagem no Tempo" (Demonstration Against Time Travel)
Curadoria | Curatorship: Evandro Salles
19 de novembro de 2022 a 12 de fevereiro de 2023
Centro Cultural Justiça Federal (Rio de Janeiro, Brasil)
A CONTRANARRATIVA POÉTICA DE GUSTAVO SPERIDIÃO
1. DESCRIÇÃO DO SENTIDO
Em um plano – abre-se um amplo espaço de convergências e possibilidades poéticas. Realidade e ilusão, tempo passado e tempo futuro, a inevitabilidade do agora. Linha, palavra, mancha e silêncio. Erros, acertos, descobertas, destruições, abandono, entrega, paixões, apropriações, revelações, revolução e classe operária. Sonho de libertação, a tragédia do agora. Como fragmentos de um corpo, surgem partes de diferentes sistemas de linguagem, como instrumentos de aferição e construção poética. Aferição da veracidade da língua, da fala em construção no seu passo a passo entre vida e morte, entre inconsciente e razão, entre entendimento e pura entrega. A construção poética se revela então como fazer fundamental na elaboração psíquica e na razão mesma da arte, do fazer arte. Dupla função constituinte. No princípio, há um método de abrir o plano ao acaso do inevitável, de silenciar as vozes rasas para que, do mais fundo, possa surgir o que diferencie na própria intenção o verdadeiro do falso. Como se fosse um chamado ritual à voz de Deus. Mas a voz que surge é a voz do dentro. Do dentro do corpo, do dentro da memória, do dentro do tempo, do dentro do silencioso e do impalpável. Esse dentro onde é gerada a palavra verdadeira. De lá vem o vento que sopra a temporalidade do definitivo e eterno agora. Então as falas se sucedem, improváveis e imprevistas. E o poema se constrói como um inventário onde cabe o mundo todo, cada coisa vivida (e vívida) do mundo. Toda e qualquer coisa, desde que cada coisa seja colocada a partir de uma ordem disruptiva, uma ordem de instauração da verdade no seu sentido de legitimidade da fala interior, de sincronicidade com o real do agora. Mas o atravessar do tempo com a aferição do inconsciente exige uma simplicidade específica e transparente. O pincel ou o lápis agem como uma faca, cortando a superfície do plano em gravações definitivas, irretocadas. Suas referências históricas são explicitadas. Suas apropriações, reveladas. Suas palavras são ditas (e escritas). Seus erros são incorporados ao lado de seus acertos. Nada há a esconder. Revelam-se as verdades cruas, as ilusões vãs ou as realidades cruéis. Transitamos então pelos caminhos de nossa própria percepção. Entre o olho e o pensamento, transitamos entre o ver e a palavra, entre o olhar e a mente. Mas estas imagens são mais rápidas que o pensamento. Não nos iludem, mas nos trazem para diante delas próprias, de sua veracidade irredutível e essencialmente poética. Somos incorporados a essa linguagem. Ao vê-las, nos tornamos parte de seu alfabeto, de sua língua. Somos incorporados à sua contranarrativa, pois dela não damos seguimento (ou conta), a não ser no plano poético, a não ser como elementos de sua poética. Olhadores da fala. Ouvidores de imagens. Navegamos. Nas articulações da imagem – a palavra. Sobre a palavra – um oceano. Navegamos. O espaço é pleno ao olhar, pleno ao capturar o olhador. Soletramos o Poema escalando o olhar que o articula. Linhas que se desdobram em oceano. Linhas, linhas, linhas. Manchas. Letras. Com elas, navegamos.
2.SOBRE DOIS FILMES
Em meio a um grande número de pinturas e desenhos, aqui serão vistos dois filmes extraordinários de Speridião: Estudos Superficiais, média- -metragem de 2013 que levou vários anos sendo elaborado, e Time Color, curta-metragem de 2020. Vertoviano por excelência, Estudos Superficiais é um filme de sofisticada elaboração construtiva: não narrativo, planos desenhados entre contrastes e modulações musicais de luz e sombra. Cotidiano assombroso que se desdobra diante do olhar desperto pela extrema beleza das imagens. Já Time Color, ainda que seguindo o rigoroso olhar construtivo do artista, mergulha no estilhaçamento da narrativa e da imagem através da radical superposição de planos e vozes, o que o faz uma paráfrase da linguagem de rede. Filmes- pensamento que perpassam de forma vertiginosa a história do cinema, da fotografia e da arte contemporânea.
3. DESCRIÇÃO DO FATO
Manifestação Contra a Viagem no Tempo apresenta uma grande e vigorosa seleção da produção recente de Gustavo Speridião. Reunindo pinturas, desenhos, colagens, filmes, e objetos, esta é uma mostra antológica de um artista denso e profícuo, fortemente inscrito nas raízes construtivas da arte. O construtivismo que – desde Malevich – busca a “supremacia do sensível” e que, no Brasil, desde Wlademir Dias Pino faz aproximar em mútua convergência imagem e palavra em fusão poética. Este constitui o seu chão, por onde caminha e transita. E transita de forma surpreendente entre a pintura, o desenho, a construção da imagem fotográfica e cinematográfica, o universo gráfico e o poema. Ancorando seu universo em fontes e práticas estruturantes do pensamento estético contemporâneo, bem como em uma rica aproximação e troca entre arte e política, Speridão tem o poder de fazer interagirem na arte o pessoal e o coletivo, o íntimo e o público, o romântico e o dramático. Com pinturas de grandes dimensões, de até 6 metros de comprimento, e outras pequenas construções em papel, pano ou gesso de poucos centímetros, Manifestação Contra a Viagem no Tempo, de Gustavo Speridião, apresenta um artista único na plenitude de seu fazer.
4. DESCRIÇÃO DO TÍTULO
O título dessa exposição foi trazido pelo curador de uma colagem do artista que, sobre uma foto impressa em jornal de uma manifestação, escreveu com tinta a frase Manifestação Contra a Viagem no Tempo. Trata-se, segundo o autor, de uma referência às alegações reacionárias e obscurantistas surgidas no discurso da extrema direita brasileira, glorificando períodos obscuros e ditatoriais da história recente do Brasil. Particularmente exemplar, esta abordagem poética com que o artista trata o episódio retira do campo da crueza política uma perspectiva poético-temporal que desestabiliza e desaliena as mistificações reacionárias. Para enfrentar a desmemória de um falso passado, propõe e nos remete ao real do aqui e agora. Imagem e palavra se articulam na construção de um terceiro sistema de linguagem: o POEMA.
THE POETIC COUNTERNARRATIVE OF GUSTAVO SPERIDIÃO
1. DESCRIPTION OF THE MEANING
In a plane – a wide space of convergences and poetic possibilities opens up. Reality and illusion, past and future time, the inevitability of the present moment. Line, word, stain and silence. Mistakes, achievements, discoveries, destructions, abandonment, deliverance, passion, appropriation, revelations, revolution and working class. A dream of liberation, the tragedy of the present moment. Different language systems appear, just like fragments from a body, like instruments of measurement and of poetic construction. The measurement of the veracity of the language, of the construction of the speech in its step by step between life and death, between unconscious and reason, between understanding and pure deliverance. The poetic construction reveals itself as a fundamental making in the psychic elaboration, and in the reason of art itself, of making art. A function that has a double constitution. At first, there is a method of opening the plane of the surface to the inevitable chance, of silencing shallow voices so that what differentiates in intention truth from false can appear from the deepest place. Just as a ritual calling to God’s voice. But the voice that appears is the voice from within. From within the body, within the memory, within time, within the silence and the impalpable. This within is where is generated the true word. It is where the wind that blows the temporality of the definitive and eternal now comes from. So, the speeches succeed themselves, unlikely and unpredictable. And the poem is built as an inventory where the whole world fits, every lived (and vivid) thing of the world. All things – as long as they are put in a disruptive order, an order of instauration of truth in the sense of legitimacy of the inner voice, of a synchronicity with the present moment’s realness. However, crossing time by measuring the unconscious, demands a specific and transparent simplicity. The brush or the pencil act as knife. Cutting the surface of the plane in definitive engravings, unretouched. Their historical references are clarified. Their appropriations are revealed. Their words are said (and written). Their mistakes are incorporated next to their achievements. There is nothing to hide. Raw truths, vain illusions or cruel realities are revealed. We transit through the paths of our own perception. Between the eye and the thought, we transit between seeing and the word, between the gaze and the mind. But these images are faster than the mind. They do not delude us, but rather bring us before them, before their irreducible and essentially poetic veracity. We are incorporated to this language. When seeing these images we become part of their alphabet, part of their language. We are incorporated to their counternarrative because we cannot follow (or account for) them, if not in the plane’s poetry, if not as elements of its poetry. Gazers of the speech. Listeners of images. We sail. In the articulations of the image — the word. Over the word — an ocean. We sail. The space is whole to the gaze, and it is whole when capturing the gazer. We spell out the Poem escalating the gaze thar articulates it. Lines that unfold in an ocean. Lines, lines, lines. Stains. Letters. We sail with them.
2. ON TWO FILMS
Among a great number of paintings and drawings, two extraordinary films by Speridião will be seen: Estudos Superficiais [Superficial Studies], a featurette from 2013 that was made over many years, and Time Color, a short film from 2020. Vertovian by excellence, Estudos Superficiais is a film of sophisticated constructive elaboration: a non-narrative film, with shots drawn between contrasts and musical modulations of light and shadow. An astonishing day-today that unfolds before the gaze awoken by the extreme beauty of the images. Although Time Color follows the rigorous constructive gaze of the artist, it dives in a shatter of the narrative and the image through a radical overlapping of shots and voices, creating a paraphrase of the network language. A cinematic think piece that vertiginously runs through the history of film, photography and contemporary art.
3. DESCRIPTION OF THE FACT
Demonstration Against Time Travel presents a great and vigorous selection of Gustavo Speridião’s recent production. Gathering paintings, drawings, collages, films and objects, this anthological show, reveals a dense and prolific artist that strongly inscribes himself in the constructive roots of art. A constructivism that – since Malevitch – searches the “supremacy of the sensible”, and that in Brazil, ever since Wlademir Dias Pino, approaches in mutual convergence word and image in a poetic fusion. This constitutes the ground on which he walks and transits. And transits in a surprising way between painting, drawing, the construction of the photographic and cinematographic images, the graphic universe and poetry. Anchoring his universe in sources and structuring practices of aesthetic contemporary thinking, as well as in a rich convergence and exchange between art and politics, Speridião reveals in art the power of interacting the personal and the collective, the intimate and the public, the romantic and the dramatic. With large scale paintings of up to 6 meters long and other small constructions of a few centimeters on paper, fabric or cast, Demonstration Against Time Travel, by Gustavo Speridião, reveals a unique artist in the fullness of his practice.
4. DESCRIPTION OF THE TITLE
The title of this exhibition was translated by the curator from a collage by the artist, who wrote in paint the sentence Manifestação Contra Viagem no Tempo [Demonstration Against Time Travel] over a printed photo of a demonstration in a newspaper. According to the author, it refers to reactionary and obscurantist allegations that emerged in the speech of Brazilian extreme right, glorifying dark and dictatorial periods of Brazil’s recent history. The poetic approach in which the artist deals with the episode is particularly outstanding, removing a time-poetic perspective from the rawness of the political field that destabilizes and reconciles the reactionary mystifications. To face the lack of memory of a fake past, he proposes and leads us to the realness of the here and now. The image and the word articulate themselves in the construction of a third language system: the POEM.
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2022
KEEP THE BUZZ ALIVE
texto de Clarissa Diniz sobre a exposição individual "Sobre Poesia", na Central Galeria (São Paulo, Brasil)
NUVEM
São quase 20 anos desde a primeira vez em que me deparei com um cubo vazado com a inscrição NUVEM (2004) pintado sob uma ponte do Recife. Eu não sabia, mas estava diante de uma das intervenções que Gustavo Speridião vinha fazendo no porto do Rio de Janeiro, uma espécie de obsessão que então já revelava sua paixão pelas nuvens, pela impermanência, pelas formas liminares da presença.
Longe de uma abordagem metafísica do céu, ao devotado admirador da obra de Claude Monet interessava participar da aventura da arte – e, em especial, da pintura – em torno dos paradigmas da representação. Por isso, junto aos seus cubos, algumas vezes pairava a tão irônica quanto crédula afirmação “como pintar uma nuvem”.
Diferentemente de Monet, contudo, Speridião não tomou para si o desafio de mimetizar ou traduzir pictoricamente sua vagante impermanência. Se, como sabemos, um dos embates fundantes da invenção da arte moderna euro-etnocêntrica se deu entre os modos de percepção e os esquemas da representação, ao trilhar os caminhos pavimentados naquela virada para o século XX, Gustavo esquivou-se da abordagem fenomenológica desse confronto.
Assim, à apaixonada persistência de alguns pintores modernos em criar formas de representar nuvens e outros fenômenos atmosféricos, Speridião respondeu com uma abordagem primordialmente política. Ao invés de dedicar-se à questão estética da representação daquilo que, no mundo, é incontornavelmente fugidio a ponto de apresentar-se como vazio, o artista preferiu lidar com o problema político da captura que está implicado na representação.
Ao fazê-lo, enquanto pintava, sobre pesadas e monumentais construções urbanas, cubos vazados com a palavra NUVEM dentro ou fora de sua estrutura gráfica, Gustavo lidava com o fato de que – semântica, estética, social e politicamente – representar é tanto confinar quanto evanescer. Desde então, sua obra parece estar especialmente interessada em produzir e sustentar tal liminaridade no campo da representação.
GUTTER
As nuvens de Speridião sobre o pano de fundo da cidade logo se tornaram variados e complexos diagramas que tomam o plano da pintura como um espaço liminar. É o que acontece quando, por exemplo, o artista inscreve a frase “fora do plano tudo é ilusão”1 por entre áreas demarcadas com linhas que estão, por sua vez, sobre o amplo plano da tela. Trata-se de uma intrincada equação sígnica que, correlacionando parede, chassis, superfície e desenho, dá a ver que a pintura é, ao mesmo tempo, tanto a “ilusão” quanto seu hipotético oposto, o “real”.
Por entre incontáveis e sempre singulares variações dessa equação, não parece ser do interesse de Speridião fixar seus esforços estético-políticos num “dentro” ou num “fora” tanto do real quanto da ilusão. Fundamentalmente, sua obra tem se dedicado à produção de liminaridade por entre essas categorias, sustentando uma instigante ambivalência cuja baliza crítica é justamente a linha que perfaz a separação e/ou o contato entre aquilo e aqueles que – estética, política e socialmente – nos interessa aproximar ou apartar.
Não à toa, sua obra tem frequentemente aludido à imagem do espaço de passagem entre as coisas, como aparece na pintura GUTTER (2020), termo inglês que designa calha, canaleta, rego. Enquanto nas histórias em quadrinhos gutter indica justamente as linhas que separam os diversos campos da narrativa – os entre-espaços que estruturam uma página de gibi, por exemplo –, na poética de Speridião o vemos assumir cada vez mais protagonismo, por vezes expandindose a ponto de tornar-se maior do que o campo ao qual deveria servir como delimitação.
Emancipando-se da condição de apêndice ou de um lugar de invisibilidade, o espaço liminar tem se tornado um dos problemas centrais de sua obra, como já esboçado nas NUVENS. Nelas, a intencional e provocativa inaptidão representacional sublinhava a própria condição liminar da representação: o entendimento de que aquilo que buscamos representar está de passagem, de modo que ressaltar a permanência e/ou a transmutação dos objetos e sujeitos representados se torna, ao fim e ao cabo, uma escolha não só estética, como também ética e política.
CESURA
Dois anos atrás, Gustavo Speridião pintou A MARCHA SEM FIM DOS POETAS REBELDES (2020), um díptico que continha em seu útero a instalação MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE, agora parida e em pé na individual Sobre poesia.
No espaço-tempo que igualmente as separa e conecta, o artista parece ter vivenciado um duplo movimento em relação às referidas obras. De um lado, sintetizou seu campo semântico. De outro, expandiu e multiplicou sua operação pictórica no espaço, transformado o antigo díptico num políptico de caráter instalativo.
A redução assumida por Gustavo infere-se na supressão dos artigos e preposições do título anteriormente pensado (“a” e “dos”), bem como na transformação da ênfase de seu enunciado, agora menos interessado no protagonismo dos autores, “os poetas”, do que na agência da própria poesia.
Os cirúrgicos cortes operados por Speridião sobre a formulação retiram seu quase axioma do campo dos bordões para inscrevê-lo, com mais fugacidade, no território da poesia. Prescindindo de qualquer função conectiva entre os substantivos que habitam os títulos das obras, o artista produz um gutter semântico que decerto faz seu anterior lema parecer, agora, uma espécie de haikai.
Não à toa, dando continuidade às investigações linguísticas que levaram o artista a elaborar as mostras sobre desenho (2007), sobre fotografia e filme (2013) e sobre pintura (2021) e na atual exposição, MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE se filia ao poético, modo linguístico que tem na cesura uma de suas tradicionais características.
Termo que Freud utilizaria para descrever a relação de simultânea continuidade e ruptura que se dá no nascimento, a cesura é, todavia, um conceito originário do campo da poesia. Indica uma pausa intencional no interior do verso: um corte tão rítmico quanto sígnico.
Parida de sua versão causal – na qual palavras linearmente organizadas indicam relações de um pertencimento exclusivista, isto é, de propriedade (“a marcha” é, afinal “dos poetas”) –, MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE, rebento cesurado da obra de 2020, explora o corte poético também no espaço, organizando-se em seis faces igualmente consecutivas e descontínuas.
Ao fazê-lo, Gustavo Speridião promove a convergência entre o gutter e a cesura. O que rompe o cárcere dos sentidos unidirecionais é a própria irrupção do espaço por entre sua pintura-enunciado: uma pausa duplamente métrica que é, afinal, um projeto de fuga ao – ou desconstrução do – controle das significações, corporeidades, políticas e representações.
VERSO
Em MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE, além de cesurar seu enunciado transmutando-o poeticamente, Speridião – que sabe que “fora do plano tudo é ilusão” – parece estar às voltas com a tradicional planaridade da poesia, incitando-nos a uma experiência com o verso do poema.
Ao instalar hexagonalmente o poético enunciado de cinco palavras, o artista nos coloca diante, dentro e fora de múltiplos cortes, cesuras, vazios e gutters. Ofertando um corpo planar – e com verso – para cada um de seus termos, Gustavo nos faz experimentar a pausa métrica da cesura como um hiato físico: o livre e conectivo vão entre as palavras e sua semantização torna-se, na instalação, a própria presença do vazio entre as telas. Espaço que é vivenciado como ar, como luz e como lugar de passagem.
Em sua autonomia construtiva, por ficarem de pé, as palavras que tanto se camuflam quanto emergem por entre acinzentados campos de manchas e linhas de carvão se fazem, portanto, como intervenção espacial. Tomam o espaço – necessariamente social – como uma de suas matérias, compondo com a complexidade que lhe é inerente: o verso, o tempo, as pessoas, o território, a arquitetura, a atmosfera, a poeira, dentre outros aspectos.
Ao construir um hexágono a ser adentrado, ziguezagueado ou circundado por outros corpos e pelo próprio ambiente, Gustavo Speridião parece estar atualizando a estrutura estético-política de suas NUVENS, criando uma arapuca entreaberta cuja dimensão construtiva e pictórica tem, por fim, a intenção de cesurar sentidos, movimentos e ordenações. Ao nos conter, a obra paradoxalmente intenciona libertar-nos da compulsoriedade histórica, política e simbólica de produzir significados e caminhos lineares, diretivos, elucidativos, normativos, prescritivos, produtivos.
SEM FIM
Como trotskista, Speridião não só aposta, como principalmente enxerga a “revolução permanente”. Sua paixão pela impermanência das nuvens e os desafios da representação que nela estão implicados tem, evidentemente, raízes políticas de grande amplitude e profundidade: o compromisso ético em não encerrar ou considerar como ex nihilo as conquistas das tantas lutas, atento que está à necessidade de seguir revolucionando em razão da infinitude das urgências sociais e da consciência de que não é possível delimitar, posto que nos ultrapassa, quando a luta começou.
Nesse sentido, ao longo de sua profícua obra, inúmeras são as situações nas quais Gustavo tem produzido continuidades, como agora acontece com MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE, cuja dimensão circular faz o poema tornar-se infindo tal como a marcha e a rebeldia por ele invocadas.
Numa justaposição circular, a instalação torna multidirecionalmente reversível a leitura do poema. Além de ser lido em frente e/ou verso, é também passível de, espiralando a cesura, ser recombinado pelo movimento de nosso corpo, que pode retornar ou ricochetear a si mesmo e às palavras, produzindo poemas como “REBELDE MARCHA POESIA SEM FIM”, “FIM REBELDE SEM POESIA MARCHA”, “POESIA SEM MARCHA FIM REBELDE”, dentre inúmeras possibilidades que têm o poder de transmutar substantivos em verbos ou adjetivos, and back again.
Dedicar-se à criação de estruturas formalmente infinitas integra, desse modo, o engajamento de Speridião em, desde suas NUVENS, sublinhar mais a transmutação e a liminaridade do que a ousar fixar ou esgotar percepções, conceitualizações, sentidos e representações.
MARCHA
A instalação agora montada em "Sobre Poesia" não só nos convida a caminhar em seu entorno e a atravessá-la, como também foi produzida em marcha.
Deitadas sobre o chão durante dias, as telas agora tornadas imponentes presenças verticais foram, antes, pisoteadas. Sem que essa caminhada tenha qualquer ambição performativa da parte do artista, ela todavia constitui o projeto estético da obra: em MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE, o caráter descentrado do poema e da espacialidade da instalação se faz também na multiplicidade de direções e intensidades de seus traços, manchas e grafias.
Andando em círculos sobre as telas, foi com os pés e com outras partes do corpo – de modo a desbancar o canônico protagonismo da “mão do artista” – que o carvão, a tinta e o verniz foram se impregnando nas pinturas junto à ação do tempo, que trouxe sua colaboração na forma de poeira, vento e decantação.
É também por essa específica temporalidade que algumas das pinturas que compõem a instalação lembram aos muros pintados das cidades dada a sensação do acúmulo e da anacrônica convivência de gestos diversos, bem como dada a variedade de recursos técnicos nela coexistentes, tal como as fachadas onde testemunhamos marcas de poscas, stickers, trinchas, sprays, cal etc.
Desse modo, MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE dá sequência às prolíficas investigações técnico-formais da obra de Speridião, cuja habitual descrição “técnica mista” estrategicamente mantém anônimas as táticas e os recursos por ele explorados.
Não só porque não nominados, mas sobremaneira porque imiscuídos, a sofisticada trama de artifícios e dispositivos composicionais empregados pelo artista informa a sensação de estarmos diante de uma pequena massa de acontecimentos, presenças e subjetividades.
MASSA
Gustavo Speridião dedicou sua dissertação de mestrado ao Bípede, um personagem-narradorautor que, em relação ao próprio artista, se posicionava – posto que não se tratava de uma definição identitária – como (Eu (ele (o autor))).
Intitulada Como Me Tornei Bípede ou Os Problemas Políticos de Ser Bípede (2007), a partir do tema das duas pernas que nos servem de apoio, o artista nos introduz numa de suas principais estratégias estéticas, em tudo irmanada à máxima marxista-trotskista da revolução permanente – a “fragmentação permanente”: “se faço o papel de dezenas de autores diferentes que se contradizem uns aos outros, e mesmo a si próprios, o Bípede também foi um multiplicar constante podendo dizer que temos Doze Bípedes, todos incertos e vacilantes, todos contraditórios entre si”.
Posto que as pernas agem conjuntamente, sua singular conformação nos corpos humanos tem a capacidade de nos fazer experimentar a dimensão de multiplicidade que é inerente à unidade. Um interesse sociopolítico ao qual se soma o fascínio estético de Speridião pelos kouroi: tradição da estatutária grega que, em sua representação monumentalizada de corpos masculinos, os apoia sobre um par de pernas em posições distintas, com um pé à frente do outro, num passo interrompido pela representação que o congela entre o ir e o vir, isto é, na condição de liminaridade da passagem.
Produzir diferença na própria inerência, tal como a cesura no interior de um verso, é uma contribuição da arte no âmbito da forma política. Como autor, Speridião busca fazê-lo ao incorporar a dialética dentro sua própria obra, antecipando, já no processo de criação, a usualmente posterior confrontação com a diferença. Uma operação de dialética intrínseca que se torna, assim, uma estratégia construtiva.
Para tanto, além de provocar e evidenciar cortes, cesuras e gutters, o Bípede-Gustavo – um fragmentador de si mesmo – tem performado diferentes projetos estéticos numa mesma obra, intencionalmente tornando algumas de suas pinturas tão geométricas quanto gestuais, tão expressivas quanto conceituais, tão planejadas quanto acidentais.
Em consonância à sua prática de apropriação de livros, imagens, símbolos ou enunciados, trata-se da disposição a evocar a multiplicidade “estilística” (isto é, estético-política) no seio do território simbólico ao qual o “Ocidente” tem reservado a expectativa de uma unidade identitária: o artista e sua supostamente idiossincrática, inconfundível e inalienável criação.
Em Speridião, a voluptuosa convivência entre diferentes vocações estéticas numa mesma obra por vezes precipita a sensação de estarmos diante do trabalho de dois ou mais autores, evocando presenças díspares que não convivem em equilíbrio, mas em movimento.
É o que acontece em grande volume em MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE, cuja caminhada multidirecional produziu manchas desordenadas a ponto de ficcionalizarem a existência de uma massa de pés, mãos, corpos. Percepção reforçada, ainda, pela fisicalidade heterotópica das seis pinturas que, de pé, nos rodeiam como se estivéssemos dentro de uma roda de ciranda ou de pogo, abraçando-nos em sua performatividade igualmente ameaçadora.
Para Speridião, ou a revolução é das massas, ou não será revolução.
REBELDIA
Gustavo Speridião é um militante socialista que tem, nas ruas, uma de suas principais escolas de arte. Para o artista, as técnicas de manifestação ou de autodefesa são não apenas estratégias de luta, como também de elaboração estética.
Compreensão que o levou a fundar o Faixa Protesta em parceria com Leandro Barboza: um coletivo que desenvolve faixas de grande escala para as marchas públicas de reivindicação social que se passam, em especial, no Rio de Janeiro. Ao fazê-lo, Speridião experimenta a própria manifestação como um lócus artístico.
Vem da experiência da luta popular a relevância que a ideia de barricada tem tomado em sua obra, do que MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE é um claro exemplo, na medida em que faz uso de soluções construtivas do tipo do it yourself para botar essa instalação-trincheira no mundo.
Como um elogio à rebeldia, a obra é, ela mesma, um exercício de memória e de fabulação de táticas de confronto popular e saberes insurgentes como a marcha, a faixa, o lambe, a roda, a pichação ou a barricada, alguns dos procedimentos mobilizados em sua criação.
Fortemente inspirado pela autodefesa dos moradores de Pinheirinho (São Paulo) contra a violenta reintegração de posse sofrida pela comunidade em 2012, a obra de Speridião parece compromissada com o que, como um lembrete, evoca uma discreta anotação de um de seus muitos cadernos: “keep the buzz alive”.
A revolução permanente pede, afinal, uma rebeldia sem fim.
POESIA
A teologia da ordem que identifica a ideia moderna de Estado se constrói também por meio da linguagem, essa admirável capacidade expressiva e representacional que, embora irredutível à comunicação, tem sido continuamente achacada pelo capitalismo cuja eficácia produtivista não a tem poupado.
Ao contrário, como demonstra a própria operação ideológica cuja discursividade pretende “anular a diferença entre o pensar, o dizer e o ser, [engendrando] uma lógica da identificação que unifique o pensamento, linguagem e realidade”3, o capitalismo manipula a linguagem para fazer, dela, uma de suas principais aliadas na contenção da rebeldia. Um sistema econômico que precisa contar com a domesticada distribuição dos corpos e das atividades em papeis produtivos bem delimitados usa a linguagem para ficcionalizar a sensação de que “tudo está em seu devido lugar”.
A poesia, por sua vez, é uma forma de linguagem cujas estratégias de enunciação permitem e, mais do que isso, fomentam o descompromisso criador e crítico com a teologia da ordem. Operações como a cesura – estratégia de fragmentação interna dos sentidos, narrativas e imagens – são, portanto, contrapartes semântico-formais da própria rebeldia: modos de insurgência contra o establishment que se dá tanto no Estado quanto no capital ou na linguagem.
Fazer poesia é, como salienta Speridião, imaginar e experimentar outras formas de organização que, desde os sentidos e as formas, são também sociais e políticas.
Na contramão da fantasia modernista que imaginou ser possível tornar as formas autônomas e soberanas, sua obra encara o espaço pictórico como espaço social. Na pujança gráfica e semântica de seu trabalho, é a própria experiência política da vida que encontra diagramas possíveis. Por entre materialidades, imagens e palavras, sua pesquisa se configura como um abundante exercício de, através da arte e de suas políticas de representação, praticar, friccionar e inverter as ordens e organizações socialmente postas no mundo.
Em Speridião, a canônica hierarquia da composição serve não como metáfora, mas como especulação crítica das estruturas hierárquicas de nossas sociedades. Os sistemas de contornos, limites e borramentos põem em tensão a racionalidade organizacional de nossas nações, classes, governos e corporações. Por sua vez, toda matéria se faz como memória e tecnologia social, ao passo que toda cor é afecção política. Por fim, para o artista, a poesia está para a linguagem assim como a rebeldia está para o establishment.
Aprender a fazer uso de gutters, cesuras e outros cortes é, portanto, uma arma contra a fantasiosa estrutura discursiva do poder que, ficcionalizando a ordem social e política, nos quer fazer acreditar que não há mais brecha, fresta ou mesmo vácuo passível de ser ocupado ou tomado como porta de entrada para a implosão da própria estrutura que os produz e os mantém à sombra.
CINZA
A despeito de sua monumentalidade, MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE, essa espécie de pedagogia poética para uma permanente rebeldia política, não se faz de forma estridente ou espetacular. A econômica sisudez de sua “massividade objetual”4 é pouco sedutora; nada tem da luminosa nitidez do galante mundo digital.
Ao contrário de uma luminosidade que é puro brilho, a luz que cruza e constitui a instalação é por ela mesma em grande parte absorvida, tomando as seis pinturas como rebatedores através das quais o que ilumina já o faz numa atmosfera opaca, contida como o preto e o branco que matizam a intensidade gestual da obra.
MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE é, por isso, eminentemente cinza como uma nuvem pesada, tomada pelo estado liminar de vir a ser chuva e, quiçá, tempestade. Tal qual as nuvens, sua cinzura não é da ordem do pigmento, mas da passagem de cor fabricada no desfazimento do carvão cujo negrume, de tão pisado, acinzentou-se.
Cromaticamente rebaixada, a instalação é, como circunscreveu o próprio artista, um “épico melancólico”. É pouco triunfal em sua verve revolucionária, mas suficientemente rebelde a ponto de tornar-se poesia e, através dela, não se deixar abater pelo desolado lamento das batalhas perdidas.
Como afetuosamente contestam os versos de Amor Cinza, de Matheus Aleluia – cuja voz grave e hipnótica Gustavo Speridião escutava enquanto caminhava pintando sua MARCHA SEM FIM... –, “na linha do horizonte tem um fundo cinza (...) / não aceito quando dizem / que o fim é cinza / eu vejo o cinza / como um início em cor / (...) vamos festejar o cinza com amor”.
1 “Fora do poder tudo é ilusão” (Lenin).
2 Excerto da dissertação do artista. Disponível em: http://serbipede.blogspot.com/.
3 Marilena Chauí em Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas (1997).
4 Guilherme Bueno em Escaramuças pictóricas (2011). Texto crítico da mostra Fora do plano tudo é ilusão, realizada na Anita Schwartz, no Rio de Janeiro.
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2022
ATÉ ONDE O CORPO AGUENTA
texto de Fernanda Lopes sobre a exposição individual "O Inventário de Problemas" na Galeria Cássia Bomeny (Rio de Janeiro, Brasil)
Ao longo de mais de duas décadas de produção, Gustavo Speridião vem investigando em pintura, fotografia, vídeo, desenho e objeto a possibilidade de existência, especialmente a existência da imagem. Não a imagem como virtualidade, imagem-luz, mas fisicamente, como corpo. A exposição O Inventário de Problemas – um reencontro do artista com sua cidade natal depois de cinco anos de sua última individual no Rio de Janeiro – apresenta um conjunto mais recente dessa discussão. A mostra toma emprestado o nome da série que na Galeria Cassia Bomeny vemos em 11 obras inéditas, e revelam um estudo quase compulsivo sobre o plano da pintura, como uma arena de debates pictóricos e também políticos.
Em sua produção, Speridião não nos deixa esquecer que toda a discussão sobre arte (sua definição, sua história e questões aparentemente estéticas) é também uma discussão política. O ponto de partida desses trabalhos é o mesmo: como pensar a ocupação do plano a partir da divisão desse espaço com dois retângulos, posicionados um em cima do outro, com um espaço entre eles.
Essa estrutura é uma velha conhecida do artista, desde 1997/1998, quando começou a imprimir suas fotografias em formato de copião - um conjunto de fotos impressas em formato reduzido em uma página. No caso de Gustavo, cada folha vinha com duas fotos, retangulares, com um espaço vazio entre elas. A princípio aleatória, uma vez que reproduziam a ordem das imagens no rolo de filme, essas sequências começaram a ser pensadas por ele, já no momento da fotografia, construindo ali uma narrativa visual a ser acessada posteriormente. Vinte anos depois, entre 2017 e 2018, O Inventário de Problemas começou a ser construído tendo como ponto de partida os mesmos retângulos e o mesmo espaço entre eles. E é explorando diferentes aspectos dessa possibilidade de relação que essa série se desdobra. A economia cromática evidencia a ocupação do plano pelos retângulos e pelos vazios como campos de força. Há uma tensão no espaço, com os diferentes pesos que esses elementos assumem, como eles se ressignificam, como estabelecem ou não uma narrativa entre eles.
Um problema é uma questão ou um assunto que requer uma solução. Por princípio, todo problema busca ser resolvido, ser deixado para trás. Não é o que querem as pinturas de Gustavo Speridião. Aqui, dificuldades, obstáculos, incertezas, complicações, contrariedades, adversidades, contratempos e embaraços, são trabalhados quase que obsessivamente. Eles aparecem, desaparecem, e voltam, de novo, e de novo, e de novo. Seu inventário é como um exercício sem fim para os olhos, o corpo, a mente e a história. É como uma coleção de tentativas e erros. E é na afirmação dessa possibilidade que reside o trabalho. O corpo do próprio artista é adotado como unidade de medida desses trabalhos, que se configuram no limite de autorretratos. A começar pelo tamanho da tela, sempre com altura de cerca de 2 metros (medida próxima à altura do artista) e largura que varia entre 2 metros e, na maioria das vezes, 1,7 metros – correspondendo à medida do artista de braços abertos. A escala das telas é reforçada pelos chassis, que é mantido aparente nas laterais desses trabalhos. A pintura aqui não é só a superfície, mas também a estrutura que a sustenta. Uma pintura que não tem nada de ilusória ou virtual: que não entra em qualquer lugar e que demanda esforço para ser transportada e sustentada na parede. Esse esforço também é demandado do artista.
O que vemos na tela é resultado e depende da ação que o artista faz, ou consegue fazer, no uso da tinta e na ocupação do plano. Essa é uma pintura que não se faz mais no movimento do pulso, na distância do braço. Ela se faz quase literalmente como um embate, reforçado pelo contraste entre a tinta preta (e suas variações a partir dos diferentes usos que Gustavo emprega) e o algodão cru da tela – que aqui não é fundo, mas sim matéria. Aqui, o plano é como um campo de batalha, de disputa de forças, uma trincheira e também um refúgio, não só da história (da arte), mas também do artista com o próprio fazer da pintura. Há também algo de mórbido nessas telas. Talvez pelo o que elas nos dizem, literalmente, nas frases e palavras que Gustavo coleciona. São inúmeros cadernos ocupados ao longo dos anos com um acervo de pensamentos e observações do próprio artista, revisitado a todo momento como fonte de pesquisa. Nas telas, são como aforismos – algo entre pichações e epitáfios – que conversam entre si, e junto à tinta, às formas, os vazios e a caligrafia, constroem imagens. Juntos, esses elementos testam o limite desses planos. Testam os limites desses corpos. O lugar em que a história da arte ensinou que tudo é possível, que tudo cabe. Mas, como Gustavo nos mostra, as coisas, as palavras tem peso.
Até onde o plano/corpo aguenta?
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2022
A INVIABILIDADE ABSTRATA DA VIVÊNCIA
Ensaio de Paulo Couto para a revista O FERMENTO sobre a exposição individual "O Inventário de Problemas" na Galeria Cássia Bomeny (Rio de Janeiro, Brasil)
25/04/2022
Rio Summit, 92 Street people kidnapped, hid from view “To save the Earth”, our rulers met Some had other secret plans No! No! No! No! Biotech Biotech Biotech Say what? Strip-mine the Amazon Of cells of life itself Gold rush for genes is on Natives get nothing Biotech Biotech Biotech Is Godzilla.
(Trecho da música “Biotech is Godzilla”, 1993, da banda brasileira Sepultura)
Não há nada de novo acontecendo no mundo. As aparições revestidas de inovação que trazem ganhos na qualidade de vida, no conforto, na diminuição dos transtornos logo se autodeterioram, como sempre acontece no capitalismo. Também os horrores nunca são novidades. Apenas são percebidos com perplexidade por conta da engenhosidade das distrações que estão no cálculo de projetos de vida que assumam despojamentos: descartar as inovações quando se deterioram e repudiar o horror quando sua normatividade se evidencia. Tal constatação constitui uma abordagem conceitual dos processos históricos e não modifica profundamente que a práxis da alegria prevaleça não só como princípio inviolável, mas também como obrigação, convertendo-se em genialidade virtuosa. Em seu livro dedicado ao Brasil, Perry Anderson aponta essa peculiaridade, na seção em que comenta o governo Dilma:
“Em meados dos anos 1980, quando o Brasil saiu de duas décadas de ditadura militar, uma classe política que havia sido criada sob esse regime resolveu manter esse mesmo sistema. Na prática, sua função era (e ainda é) a de neutralizar qualquer possibilidade de que a democracia gere um anseio popular que ameace a imensa desigualdade brasileira, cloroformizando as preferências de voto num miasma de disputas subpolíticas por vantagens venais. A parcialidade do sistema é acentuada por uma representação política extremamente desproporcional em termos geográficos. (…) O resultado é que as três macrorregiões mais pobres e atrasadas do país – antros dos caciques mais tradicionais e que dominam os grupos mais submissos – abarcam dois quintos da população (…) Em vez de corrigir o viés conservador do sistema, a democratização o acentuou, acrescentando novos Estados subpovoados que agravam ainda mais esse desequilíbrio.”
Tapar o sol com a peneira.
Se essa abordagem historiográfica desvela a regularidade das estruturas políticas, econômicas, subjetivas, comportamentais e anula a possibilidade da novidade, pode-se dizer que há, porém, a materialização de uma leitura poética atípica sobre esses processos no trabalho de Gustavo Speridião. E, no seu caso, isso não aparece como algo determinado pela conjuntura atual, descolado do decurso do tempo e focado no presente, mas por meio de sua trajetória política e artística, que orienta sua análise sobre a totalidade da História.
De saída, tanto Anderson quanto Speridião podem padecer sob o rótulo de pessimistas, e suas obras como um compromisso de serem reveladoras de um grau máximo de pessimismo. Em relação a Speridião, isso é um equívoco (por diversos motivos), uma vez que, enquanto sujeito e artista, estamos sempre diante de um revolucionário. Ao reconhecer a degradação humana que o capitalismo causa, o revolucionário não faz concessões até a superação total das injustiças. Mais do que ninguém, o revolucionário é movido pelo mais intenso otimismo, e pelo seu olhar sempre se visualiza a esperança no horizonte. Seu papel é o de fazer o acompanhamento crítico e a observação vigilante das transformações do processo histórico.
O que seria, então, sua leitura atípica nesse momento e por que passou por esse tratamento formal agora? De modo ligeiro, Speridião sempre trabalhou com a linguagem, ora linear, ora desnarrativa, ora pragmática, ora poética, e também provocando um embate entre esses rumos. A série O inventário de problemas, no momento em exposição na Galeria Cassia Bomeny, no Rio de Janeiro, é como um apuramento das questões de pesquisas políticas e artísticas que mostram as reflexões que Speridião vem praticando nesse passo de sua trajetória. A compilação de distúrbios, adversidades, reveses, buracos, tragédias e tantos assombros não pretende oferecer respostas objetivas a partir da somatória das unidades problemáticas e temporais, mas é surpreendente o resultado intuitivo e abrupto que surge no “relatório” dessa fase do inventário, que vem sendo trabalhado desde 2017.
Se o uso da palavra e de formas desenformadas, no corpo da obra de Speridião, costuma assumir atributos lineares-desnarrativos-pragmáticospoéticos- etc. do tipo Amanhã manifestação, Não temer o mundo, mudálo! O tempo não fala em nosso espaço, no inventário percebe-se uma guinada em direção a outro tipo de lógica. Modulações como The adventure begins now / It is over, Outro dia / Mesmo lugar, Seu plano de fuga 1 / Seu plano de fuga 2, Time and time again trazem a vigência da formação de sua leitura política e artística.
Se justamente preferimos praticar o otimismo, ou esse outro tipo de lugarcomum que se equilibra como realista, onde, apesar dos pesares, encontramos alegrias e saídas, estamos crendo na vivência. O próprio Speridião considera que o intervalo entre o início e o fim da aventura pode ser uma vida de mais de setenta anos. Em todo caso, o impacto das obras sugere essa inviabilidade abstrata da vivência. Começar e terminar a aventura nos limites da mesma extensão, o dia passar e permanecermos na mesma estrutura-tempo, as duas possibilidades de fuga se encerrarem no mesmo espaço da composição, o tempo e a técnica se repetindo descontinuados despertam para a inexistência de percurso, de deslocamento, de trajeto e alertam para a paralisia, para a estagnação e para a insignificância e a desvalorização incontornável da vida no capitalismo. Início e fim, tentativa e fracasso, som e silêncio, nada e tudo transcorrendo simultaneamente na mesma fração de segundo.
Sintetizar essa proposição por meio do título O inventário de problemas também incute questionamentos secundários: Quais são os problemas? Qual a natureza dos problemas? De quem são os problemas? Do mundo? Do capitalismo? Da História da Arte? São problemas subjetivos do artista? São dilemas próprios sobre suas práticas? Uma obra em particular parece dar indícios, mas logo Speridião apruma sua própria consequência. Multiplicando o mesmo padrão de desenhar retângulos indefinidos, o mesmo plano sobrepõe os nomes de Trotsky, no retângulo de cima, e de Rothko, no de baixo. O teórico da revolução universal, que foi assassinado por “fogo amigo”, e o artista expressionista acometido pela ardente fragilidade que potencializa sua obra, e que se suicidou diante de sua impotência sobre o destino supérfluo da arte, representam os problemas do mundo e da História da Arte, que por sua vez Speridião assimila como seus dilemas pessoais.
Talvez apenas por meio do ofício de artista, Speridião consiga propor que não é possível pensar o devir existencial descolado das interferências infraestruturais. As palavras e frases em sua obra não são linguagem em estrito senso. São pinturas. Devemos a Jasper Johns (em sua esteira de influência dadaísta) a inventividade de perceber e tratar letras, números, mapas, bandeiras por sua constituição abstrata indestrutível. Esses artifícios funcionais da linguagem jamais perdem sua inteireza, independentemente da infinidade dos suportes onde podem ser visualizados e gerar seus efeitos funcionais ou descontruídos. Joseph Kosuth também desfaz a pretensa estrutura linguística da palavra, esgarçando sua resistência por meio da combinação dos próprios artifícios linguísticos, evidenciando que muitas vezes aquilo que consideramos a obra de arte diante nós não o é, mas sim o conteúdo imaterial que paira sobre o objeto. Ultrapassando o estritamente conceitual em Johns e Kosuth, Speridião desdobra esse tipo de pesquisa, passando-a pela gerência dos problemas políticos.
Mas não são palavras. São pinturas. E Speridião articula a palavra-pintura com a pintura de formas desenformadas, prezando pela importância da presença desses recursos na composição. Mais uma vez, parece que os rótulos não dão conta do que o artista pretende propor. Expressionismo? Abstracionismo? Informal ou geométrico? Ao se mostrar o artista preocupado e dedicado a esse tipo de debate teórico, seus resultados acabam por renovar e atualizar a teoria e a prática. Tudo está lá, e ele se utiliza de tudo: a superfície bidimensional, a possibilidade de levantar uma espacialidade nesse suporte, as massas de tintas, o preto, o branco e suas gradações, o rastro gestual do corpo, o intelectual e o emocional. Interessante como o lema de Lenin serve como diretriz para a arte: “Fora do poder tudo é ilusão”. Numa releitura, Speridião opera a pintura-frase “Fora do plano tudo é ilusão”, segundo ele, “entre linhas paralelas espremidas”. Convergindo a arte e a política:
“Considero (a frase) a mais atual hoje, já que muitos processos de revoltas/levantes/‘primaveras’ se recusam programaticamente em tomar o poder. E a relação com a frase “Fora do plano tudo é ilusão” é a velha questão do plano idealizado de simulação, simulacro e ilusão, que foi combatido por um lado e reafirmado por outro, em um movimento permanente. Hoje a pintura figurativa retoma a questão do plano ilusório. O cinema, quando abandona uma pesquisa visual experimental e vira ilustração de literatura, está utilizando o plano ilusório.”
Um retângulo indefinido na superfície da tela pode ser a referência no plano que abre o espaço para que a massa de tinta seja aplicada, fazendo contrastar planaridade e espacialidade. De outro modo, um gesto convulsivo pode ocupar a superfície, e as gradações de preto e branco podem ser localizadas no interior do espaço. Se em Speridião a expressividade, o conceitualismo, a abstração, enquanto temas da História da Arte, parecem se renovar e se atualizar, talvez isso se evidencie na sua ação gestual, por esta ser política. Anthony Giddens pode oferecer um acesso ilustrado do movimento de Speridião:
“As componentes motivacionais da ação, que referencio à organização das necessidades do ator, vacilam entre os aspectos conscientes e inconscientes da cognição e da emoção. Tudo no funcionamento da teoria psicanalítica nos sugere que a motivação possui sua própria hierarquia interna. Num [outro texto] defendo que é essencial para a teoria social possuir uma concepção do inconsciente (…) O inconsciente só pode ser explorado quando em relação com o consciente, isto é, contra a teoria que ao procurar relacionar as formas de vida social com processos inconscientes, não deixa às forças sociais autônomas suficiente liberdade de ação – a esse respeito, os próprios escritos ‘sociológicos’ de Freud deixam bastante a desejar.”
As clausuras que as categorias impõem aos gestos são de responsabilidade da crítica, e também da omissão de um sistema educativo e pedagógico, além da desvalorização da arte nas sociedades de todo o mundo. Ou seja, se há algum hermetismo atribuído à arte contemporânea, não é na conta dos artistas que se deve cobrar. No caso, o que é limitação categórica ou – por que não? – esforços para ser possível conversar sobre arte, para os artistas são veredas.
Mas Giddens não falha em ajudar. O rastro do corpo do artista, primeiro, revelou a coisicidade da obra de arte e a emancipou dos dogmas. Depois se tornou expressão emocional. A arte política de Speridião se mostra como esse fluxo da subjetividade para a ação. Se o resultado final pode ser visto como a materialização de uma arte revolucionária consciente, é porque as motivações foram gestadas na imersão de autorreflexões interiores. Essa predisposição não só situa Speridião em contraste com uma “tradição” como confere um caráter distinto a sua produção.
Talvez haja mais um aspecto fundamental. Na Galeria Cassia Bomeny, a curadoria de Fernanda Lopes montou uma exposição paralela com obras de artistas brasileiros que dialogam com Speridião, como Antonio Dias, Carlos Zilio, Antonio Manoel, Artur Barrio. Por mais abrangente que seja o olhar de Speridião, buscar nas particularidades do contexto brasileiro elementos que atravessam sua obra se faz quase imperativo. Objetivamente, Antonio Dias é uma referência para o inventário. A disposição dos dois retângulos indefinidos que predomina na série é como uma visada hábil do olho do pintor Speridião sobre a obra de Dias. Na esquematização esquadrinhada do território, em distribuição quadrangular, excessivamente asséptica, quase mecânica, o pintor enxerga pintura. A partir daí, aparece o termo gutter, que se traduz por calha, canal, sulco, que por sua vez empresta da formatação das histórias em quadrinhos os espacinhos entre um quadrado e outro onde a narrativa vai se desenrolando. Gutter é a organização de canaletas que sustentam o desenho dos retângulos indefinidos, por entre os quais passa um exército.
E o contexto brasileiro reúne uma série de exemplos de como enfrentar e reverter a degradação do capitalismo. Além dos nomes na exposição paralela, poderíamos pensar em Inserção em circuitos ideológicos, de Cildo Meireles. Mas, em certa medida, Nelson Leirner inaugura essa postura quase obrigatória na história da arte brasileira, no Salão de Brasília de 1967. Na ocasião, Leirner enviou para submissão do júri do salão um porco empalhado como obra de arte. Tratava-se de uma armadilha sem saída para o júri. Se o porco fosse rejeitado, Leirner acusaria o júri de conservador. Se o porco fosse aceito, Leirner já teria preparada uma carta pública para questionar quais os critérios do júri ao aceitar com tanta facilidade um porco empalhado, num momento em que a arte conceitual ainda não era totalmente compreendida. Seu argumento era de que o sistema capitalista da arte assimila rápido qualquer inovação, transformando a arte em mercadoria, sempre visando o lucro.
Para azar ou sorte de Leirner, o júri era composto por Frederico Morais, Mario Pedrosa, Walter Zanini, Mario Barata e Clarival do Prado Valadares, e o porco foi aceito. Reconhecemos entre esses nomes não só críticos arrojados, simpáticos às inovações e nada reacionários, como casos raros de inteligência na malfadada história da crítica de arte. Mas Leirner não hesitou em iniciar sua guerra na esfera pública, lançando sua carta que gerou réplicas, tréplicas e muito caos. Essa é a obra, e não o porco, assim como penetrar nas fábricas da Coca-Cola, e não as garrafinhas adulteradas que ensinam a fazer coquetéis molotov.
De vez em quando esbarramos com esse porco feio e asqueroso. Alguns riem, outros procuram atributos formais ou intelectuais. Mas o porco é um dispositivo para imaginação histórica, que anima nosso esforço em fantasiar o abalo do capitalismo. Speridião tem outra pintura-frase que se encontra com esses exemplos: “Ainda bem que esse tipo de arte um dia irá acabar”. E se confirma seu otimismo. O gesto gerador de imaterialidade faz com que o tanto que não estamos vendo, que está além da pintura, escape de todo o cerco do capital e se torne expediente oportuno para a subversão. Porém, parece que saídas como a de Leirner configuram as disputas armadas e irreversíveis. De qualquer maneira, o porco é uma aventura que uma vez iniciada jamais terminará.
REFERÊNCIAS
Anderson, Perry. Brasil à parte – 1964/2019. São Paulo, Boitempo: 2020. Giddens, Anthony. Dualidade da estrutura – agência e estrutura. Oeiras, Portugal, Celta: 2000. *Ensaio publicado na revista online O Fermento, em 25/04/2022. Todos os direitos reservados
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2021
GUSTAVO SPERIDIÃO: UM QUEBRA-CABEÇA DA ARTE
texto de Miguel Chaia para a exposição individual "Time Color e Sobre Pintura" na Sé Galeria (São Paulo, Brasil)
1. Os trabalhos de Gustavo Speridião e seus fundamentos conceituais compõem um amplo painel, como se fosse um quebra-cabeça, com peças que se encaixam, mas também causam fricções que ampliam a potência da produção do artista e reforçam a diversidade de suportes e linguagens nos quais ele transita com facilidade.
2. Nesse quebra-cabeça, estão peças decantadas das pinturas, dos desenhos, dos livros de artistas, da poesia, dos tridimensionais, do pensamento filosófico, do ativismo político e urbano e outras práticas a mais. Agora, nessa dupla de exposições na Galeria Sé, no início de 2021, o artista recorta sua produção e apresenta dois suportes e respectivas linguagens: a tela–pintura; o gesso–tridimensional. Entretanto, embora haja uma delimitação da produção a ser apresentada, as peças dos dois grupos de trabalhos portam toda a diversidade e especificidades da trajetória de Speridião. Nas diferenças, as peças se encaixam exatamente por possuírem em comum a concepção de arte e de mundo do artista. O fazer artístico está intimamente ligado ao pensamento ético-estético.
3. “Sobre pintura” é uma parte da atual mostra que ocorre em um galpão, espaço amplo, para receber pinturas-monumentos: telas de grande porte, com uma vocação operística e que aspiram o mural desejando o espaço público. Essas pinturas, geralmente com duas formas retangulares pouco delineadas sobrepostas de cor preta intensa, flutuam no espaço da tela e entre essas formas estão palavras ou elementos gráfico. Embora ancoradas na síntese e na simplicidade, essas grandes pinturas dialogam com a arquitetura, com o desenho, a escrita, a poesia e a política – uma peça de um quebra-cabeça tem necessidade da outra.
4. “Time color” é outra parte da exposição que se realiza no interior da Galeria Sé, espaço intimista, com tridimensionais-textuais: volumes quadrados de menor dimensão que se abrem para oferecer espaços internos, viscerais, como se fossem páginas de livro ou pequenas bocas de cena com legendas. Esses objetos retangulares repetem sua forma externa em moldes internos cavados no gesso contendo pequenas manchas de preto e palavras escritas. A característica textual desses trabalhos tridimensionais remete a um livro aberto ou a um espaço de representação. Esse conjunto de objetos configura uma instalação. Num sentido inverso, mas complementar às grandes pinturas, esses trabalhos duplamente retangulares aspiram a atiçar o olhar, nos fazer ler/ver a expressividade objetual, convidando à reflexão pausada. Os tridimensionais são pesados, multiplicam a gravidade, trazem o peso da matéria e da engenharia, mas com a densidade aliviada pela dimensão intimista e pela presença de suaves manchas de desenhos e de grafismos. O artista imprime graus de dimensionalidade a uma página de um caderno, criando um jogo de espelho entre o espaço externo e um interno.
5. Esses tridimensionais apontam para o significado recatado do teatro no pensamento de Speridião, uma vez que o teatro remete à apresentação, à atuação e à formação da consciência crítica. Percebe-se no artista uma identificação com a ironia e o método de Bertolt Brecht. Também na Sé, reforçando esse caráter textual, são exibidos desenhos, folhetos e o vídeo Time color.
6. O conjunto da obra de Gustavo compõe um quebra-cabeça, como já indica essa dupla exposição, cujas peças unitárias são tão relevantes quanto o total da produção – parte e todo estão conectados organicamente, se completam para buscar sentidos. Assim, se nessas duas mostras, há a proeminência da pintura, esta só se fortalece pelas contribuições originadas de outras esferas e linguagens da arte.
7. Por exemplo, as pinturas da mostra são simplesmente pinturas, mas – e aí entra a potência estética crescente propiciada pelo fator relacional – também são poemas visuais. Seja pela intencionalidade do artista de se revestir em poeta, seja pela inclusão das palavras ressignificando as relações formais construídas na tela. A palavra, ou frase curta, pelo seu enigma ou abertura para a liberdade do pensar possibilita uma nova organização dos acontecimentos e signos do plano. Assim, reforçando a imagem do quebra-cabeça para pensar a arte de Speridião, cabe indagar: qual peça se destaca, a da pintura ou da poesia? Impossível responder quando são duas peças fundamentais e complementares.
8. Gustavo Speridião se coloca no interior de uma consistente tendência da história da arte brasileira, aquela que recorre à palavra escrita, ao texto, para se fazer inteira. Assim, ele se inclui naquele caminho aberto por Mira Schendel, José Roberto Aguilar, Leonilson, Karin Lambrecht, Leonora de Barros e outros que poetizam nas artes plásticas ampliando os limites da linguagem. O trabalho de Speridião remete também aos irmãos Campos, Haroldo e Augusto, poetas concretos que fazem o caminho inverso, da base da literatura para as artes visuais.
9. Esse aspecto literário de Speridião é reforçado pela obsessiva dedicação à produção de cadernos / livros de artista – fonte do seu fazer artístico. E essa qualidade reverbera nas pinturas-monumentos e nos intimistas tridimensionais.
10. As formas retangulares, os quadrados inconclusos, se repetem nas telas e nos tridimensionais (com frequência) talvez desvelando uma estratégia de trabalho para incluir e valorizar, nas artes plásticas, a palavra desenhada e, por meio dela, explicitar a sua verve política, filosófica e política.
11. As pinturas e os tridimensionais trocam referências e signos entre si – possuem o quadrado, os retângulos com as bordas irregulares, a cor preta sozinha ocupando as áreas, grafismos rápidos e palavras indicativas – mas mantendo suas autonomias. Uma abre gentilmente espaço para outro, mesmo utilizando os mesmos recursos visuais.
12. Speridião, no seu trabalho artístico, cria repetitivamente manchas que insinuam formas geométricas, geralmente o retângulo. E, também, registra palavras nos suportes, com grande frequência, que insinuam verdades.
13. As cores utilizadas, principalmente a preta, mas também a vermelha, são cores gráficas, aquelas dos jornais e dos folhetos. Tons de cores que circulam no cotidiano urbano.
14. Todos os dois conjuntos dessa atual exposição são parcimoniosos, sintéticos. Nas pinturas, há o predomínio da larga escala e da cor preta dos quase retângulos. Os objetos guardam a escala do corpo humano, e se impõe o branco do gesso com suaves manchas cinzas ou pretas. Os retângulos, ou delineados irregularmente pelo pincel ou moldados no gesso, constituem construções modulares e repetitivas que estruturam o plano da tela ou o espaço circundante do objeto. Constantemente, nos dois conjuntos, estão presentes palavras, sozinhas ou em frases, que amplificam a reflexão e instigam a indagação.
15. Dessa reflexão nasce outra peça do quebra-cabeça montado por Speridião: a filosofia. Seu fazer artístico é uma forma de arte-conhecimento que gera ideias e conceitos a partir do olhar decifrador. E o filosofar visual/literário/poético vem constantemente acompanhado pelo bom humor, também desafiador. Assim, as formas, as manchas, as linhas e as palavras se unem na criação de um jogo lúdico para introduzir pistas de saberes. Deixando muito espaço a ser preenchido pelo observador, interessa ao artista abrir frestas para produzir um saber da arte sobre si mesma, um conhecimento das relações políticas e uma consciência da realidade.
16. O Tempo, a Práxis, a Realidade e a Arte são algumas dos temas recorrentes em Speridião. Por isso pinta nas suas telas(ou desenha nos papéis) palavras como: hora, era, parece, foi, perfect, pintura, ilusão, tempo, arte, missão, estrofe, lançamentos, amanhã, melodia, ou frases como “The adventure begins now. It is over” e “Sempre é temporário”. Na arte, entre outros temas, questiona a potência e o significado da pintura – reflete sobre o plano pictórico, indagando sobre os desdobramentos da ação do artista sobre a superfície do tecido, da madeira... para pensar o conflito ilusão–realidade.
17. Em seu caderno de anotações, Gustavo Speridião escreveu: “‘O inventário de problemas’. Aborda a questão das – divisões do plano pictórico. (e as divisões políticas do espaço); - evidência a simplicidade das duas dimensões; - (plano) (plano 2D) (plano 4D)”. Essas preocupações se verificam em vários trabalhos, inclusive em uma tela onde escreve “sobre pintura” entre dois retângulos em formação, como se fossem manchas pretas inaugurais.
18. Ele está espreitando a realidade – existencial, social e política – nos seus paradoxos e insuficiências, buscando se situar nos diferentes fluxos de linguagens. Coloca-se um desafio constante para testar os limites do poder da arte para dar conta do real.
19. Maria Montero escreveu que Speridião “se refere ao ateliê como sua caverna”, para, em seguida, constatar que “Da pele brota sua geometria, seus triângulos e círculos. Tudo feito na proporção do corpo e na relação com a vida, o entorno, a história da arte, os afetos, os caminhos que percorre, as aventuras de uma mesa de bar, as viagens no tempo” (2017).
20. Seus trabalhos, brotados da intersecção da vida com a arte, estão entre o trágico e o simbólico, pois reverberam as tensões entre razão e impulso, sobriedade e absurdo, sério e engraçado. A suspensão de uma única lógica e a escolha de diferentes intermediações permite melhor aguçar o olhar e a consciência.
21. A política é outro pedaço do fazer artístico de Speridião e que atravessa esses atuais trabalhos. Nesse sentido, o artista circula pendularmente entre o ativismo das intervenções no espaço urbano e as referências da teoria política. Ele escreveu em um trabalho: “Um desenho de resistência” que induz à formulação geral da arte como forma de ação/participação. Cabe ao olhar atento descobrir quando um “manifesto” está mergulhado nas dobras dos trabalhos de Speridião!
22. Além da cor preta, às vezes, ele recorre à cor vermelha. Ela pode se intrometer ou explodir nos suportes.
23. A arte, o seu significado e a sua história permeiam a produção de Speridião. Ou escrevendo ou recortando o tecido da tela, o artista discute a arte como ilusão, os limites da representação e o poder da arte.
24. O poder da arte atravessa toda a produção de Speridião e esse aspecto se deixa entrever num certo “brutalismo visual”, menos rígido do que o brutalismo arquitetônico original (movimento europeu que atinge seu ponto máximo na década de 1960), mas marcante nas obras de Lina Bo Bardi e Paulo Mendes da Rocha. Para este arquiteto, a presença do brutalismo no Brasil ocorre porque, sendo um país póscolonial, está “condenado a ser moderno” (Heathcote, 2021).
25. As pinturas-monumentos e os tridimensionais-teatrais, dessa atual exposição de Speridião, acenam para esse movimento histórico e relevante na arte brasileira e, principalmente, paulista. Nas artes plásticas, um bom exemplo a lembrar, nessa possibilidade de aproximar brutalismo e artes visuais, é o escultor estadunidense Richard Serra.
26. As suas pinturas, que almejam o mural, quase requisitam o espaço público e insistem na presença dos retângulos e vãos entre eles. Os seus tridimensionais pesados e abertos em boca de cena teatral expressam dignidade, solidez e afirmam a presença urbana. A parcimônia no uso de materiais, a síntese na construção das formas, a sobriedade no plano e no espaço, o uso exclusivo de uma cor trazem lembranças do brutalismo. Essa aproximação mais transparece ao se acrescentar a dimensão política enquanto desejo do artista de intervenção pública e de transformação social.
27. Esse aspecto também se deixa perceber no detalhe da montagem dos trabalhos. Geralmente as pinturas de Speridião são fixadas em uma estrutura de madeira, com cerca de 15 centímetros de profundidade, resultando num bloco compacto e sólido que ocupa tridimensionalmente o espaço.
28. Nas duas séries ora apresentadas pelo artista, percebe-se a geometria; a recusa do acabamento; a explicitação da matéria, tanto da tinta quanto do gesso ou da madeira; a visualidade imediata sem mediações; a eliminação da representação; o desapego 6 ao maneirismo e ao adorno; a valorização do retângulo; a justaposição de quadrados, a construção deliberada de espaços vazios e, ainda, o destaque do peso seja das formas pictóricas nas telas, seja dos tridimensionais.
29. Gustavo Speridião reinscreve a questão do projeto modernista nos seus trabalhos visuais, descortinando novas possibilidades desde que passe pela poética subjetiva e existencial, ou seja, desde que essas questões sejam norteadas pelo reino experimental da liberdade, conforme Mario Pedrosa.
30. O artista se localiza em uma situação da “arte crítica”, na qual a consciência do artista se sobrepõe à ideologia ou a um projeto institucional de modo que seu esforço se dirija ao avanço da linguagem e, simultaneamente, ao embate com a realidade circundante. Se aproxima, mas não incorpora uma politização da arte (Chaia, 2007).
31. Speridião produz uma poética visual baseada no desencanto trágico e no humor sem riso que nascem da absurda realidade, para oferecer outras possibilidades da arte constantemente revigorada. Para tanto, aceita o desafio de vivenciar um constante quebra-cabeça, uma vez que os seus trabalhos são partes que dialogam entre si, avançando numa estética libertária.
Bibliografia ARANTES, O. (org.). Mario Pedrosa: Política das Artes. São Paulo: Edusp, 1995. BENEVOLO, L. História da Arquitetura Moderna. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004. CHAIA, M (org.). Arte e Política. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007. HEATHCOTE, E. Arquitetura de estilo brutalista corre risco e vira alvo de Trump. Folha de S Paulo, São Paulo, 19 de janeiro de 2021. MONTERO, M. Gustavo Speridião: Quilômetros. São Paulo: Galeria Sé, 2017. SPERIDIÃO, G. Anotações de caderno do artista. Miguel Chaia* Fevereiro de 2021 *Professor na área de Ciências Sociais e no curso de Arte: Crítica e Curadoria da PUCSP. Doutor em Sociologia pela USP. Coordenador e pesquisador do Neamp (Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política). Autor de várias publicações sobre Arte e Política e Arte Brasileira.
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2019
CHRONIQUE DU TROUBLES : SOLOS
Le filles du calvaire Galerie (Paris, France)
Commissariat (Curated by): Thierry Raspail
"Le dessin d’une ligne coupe le papier en deux. Le dessin des cartes et des frontières transforme des voisins en étrangers". Marlène Dumas, 2010
"Chronique du trouble" est délibérément optimiste. Chacun des trois protagonistes fabrique quelque chose d’une autre poésie, une manière silencieuse de hurler les formes et de ne pas s’en laisser conter... L’exposition rassemble trois artistes de même génération. L’un, allemand, travaille en France, l’autre, français, travaille aux États Unis, le troisième, brésilien, quand il n’est pas au bout du monde, travaille à Rio. Tout dans leur œuvre les rassemble, rien dans leur forme ne se ressemble. L’exposition travaille les prémisses du trouble, les petits troubles avant-coureurs, ceux qui, à l’échelle papillon, provoquent tout au bout de la chaîne, les lointaines catastrophes que l’on n’imagine pas encore. C’est une manière d’antidote ! Jan Kopp s’intéresse à ce qui manque à une image, lieu d’incomplétude, à ce que cachent et dévoilent les mots, à ce qui, dans la répétition, se dote de singularité irréductible, et à l’étrangeté du temps qui nous traverse, passe et s’enfuit alors qu’à l’échelle quantique, il n’existe probablement pas. Jan Kopp alterne travail d’atelier et œuvre collective, films, dessins, performances, installations. Il réalise pour l’exposition une installation in situ dans laquelle le cycle du temps et sa trace immobile seront les modestes héros.
Antoine Catala bricole des bidules extrêmement sérieux aux technologies low cost : logos rampants, aphorismes pneumatiques ou rébus sinueux. Les mots s’effritent pour dire quelque chose du monde. Les toiles respirent. L’humour affleure entre deux ou trois potentielles tragédies. Profileur de technologies empathiques, il réconcilie, à supposer qu’ils se soient fâchés, les deux versants de l’absurde et de l’efficacité.
Gustavo Speridião s’immisce entre l’histoire et l’histoire de l’art en s’appropriant des images célèbres d’actualité tragique, pour en faire des scènes signées Picasso ou Fontana. Ses sources d’inspiration, quand elles ne sont pas tout simplement prises dans la vie de tous les jours, sont du côté de Courbet, Malevitch, Chris Marker ou simplement dans les coins des murs graffités des villes. Cinéaste, peintre, photographe, orateur, il a la conviction que l’action peut changer le monde et que la peinture est action. À la fois image et message, toile, pancarte et bannière, l’œuvre a l’efficacité d’une lame acérée et l’évidence d’une réussite. Tour à tour poète et politique, sa forme erre à l’aune du temps des débats et des convictions. Gigantesques formats ou minuscules collages, la poétique des mots et la prégnance des couleurs qui s’y trouvent, revendiquent la force du présent. Et le message, littéral ou métaphorique, rappelle, et en appelle, au temps des convergences. Les trois Solos de l’exposition, l’ensemble des trois, trace un chemin à travers les étendues multiples que sont les œuvres, qui émanent, comme toujours, d’une quantité inépuisable de causes.
Ce qui intéresse ici, ce sont moins les « causes inépuisables » que les conséquences multiples de leur association, c’est à dire la nature du chemin et la poétique du moment. Tout commence avec l’agencement primitif des images et des mots, et ça commence pour nous au néolithique, et s’achève tout au bout des chaînes d’interprétation aux simultanéités magiques et aux combinatoires recomposables à l’envi. Quid de l’anthropocène ? L’œuvre comme moteur de recherche. L’exposition comme trouble sympathisant.
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2017
QUILÔMETROS
texto de Maria Montero para a exposição individual "Quilômetros" na Sé Galeria (São Paulo, Brasil)
Então ele me disse: nunca ninguém me viu pintar. Nunca, ninguém.
Gustavo Speridião se refere ao ateliê como sua caverna. Faz sentido.
Paredes foram ocupadas com seus escritos, anotações, bilhetes de amigos, colagens e nuvens.
Dezenas de telas ficam sobrepostas penduradas nas paredes, é através do movimento coreográfico de grampear e desgrampear, deslocando-as de lá pra cá, que o espaço se transforma a cada instante.
Em quinze minutos nada estará mais no mesmo lugar.
Mora na imaginação do espectador o modus operandi como trabalha.
Seriam aqueles rabiscos, riscos e escritos, gestos extremamente rápidos, catárticos, violentos? Seriam gestos silenciosos ou carregados de sofrimento? Ora parecem rompantes expressivos, ora parecem que tardaram séculos para surgir. Ora em paz, em sintonia com a poesia do mundo, ora raivosos e caóticos. Ora protesto, ora embriaguez. Ora precisão, ora vacilo, poesia errante.
Telas funcionando como pele. Dos poros brotam angústias, sonhos, devaneios, ilusões e desilusões.
Da pele brota sua geometria, seus triângulos e círculos.
Tudo feito na proporção do corpo e na relação com a vida, o entorno, a história da arte, os afetos, os caminhos que percorre, as aventuras de uma mesa de bar, as viagens no tempo.
Em 2011, ainda sem saber por quais bifurcações a arte me levaria, visitei seu ateliê pela primeira vez. Citar esse fato não é mero detalhe.
Segundo Deleuze e Guattari somos formados por três tipos de linhas: a dura, a maleável e a de fuga. As duras são as grandes divisões estratificantes da sociedade; rico ou pobre, homem ou mulher. As maleáveis possibilitam certas variações, e a de fuga rompe totalmente com os limites estabelecidos.
Para o entendimento desse processo são cruciais a noção de corpo e desejo. Nessa nova ideia de subjetivação coloca-se o corpo enquanto fonte de sentido, o “eu penso”, dá lugar a uma apreensão de mundo que acontece na relação com o outro.
Foi uma dessas linhas de fuga que atravessou meu corpo naquele primeiro encontro. Verdadeiro rompimento causador de mudanças bruscas, revoluções internas que nos entregam a pura experimentação do nosso existir no mundo, linha ativa, que precisa ser inventada por liberar o desejo da prisão dos estratos, linha que lança o homem ao desconhecido.
O efeito desse atravessamento pode ser passageiro ou ganhar dimensão maior em Sé apresenta: nossas vidas.
“Quilômetros” é sobre essa dimensão.
É sobre um modo de vida, vidas entrelaçadas pelo fazer artístico. Dobras da existência para todas as direções, primordialmente para dentro.
Perfurando com tinta preta, nanquim, carvão a superfície das telas que por sua vez ocupam as paredes da Sé transparecendo a força da energia pictórica. Enrolando e desenrolando questões, técnicas, existenciais, éticas e estéticas.
Em 2017 celebra-se o centenário da revolução russa, é curioso a sincronia no tempo que essa exposição representa. Militante, Speridião vive a experiência dos confrontos na pele. Participante ativo, seu engajamento ultrapassa as questões formais. É um anti-conformista. Se os artistas são termômetros de seu tempo, Speridião retrata o momento atual das manifestações, da desilusão política. Suas telas em grande formato são obras-bandeiras-manifestos. São gestos de luta, do forte desejo utópico de justiça social, trabalhista e poética.
O que existe em comum entre sua obra e o conceito revolucionário é a tentativa de alcançar um ponto de ebulição. Uma urgência, tensão explosiva apaziguada pelos vazios que deixa nas telas.
Podem ser difíceis de compreender, seus vazios. Uma perda de espaço, de material. Mas a perda é ganho de silêncio. A pausa que compõe a melodia. É o absoluto orquestrado. É um futuro muito incerto mas já cheio de saudade, como já dizia Martinho da Vila.
O historiador francês Georges Didi-Huberman esteve em São Paulo recentemente para abertura da mostra “Levantes”. Nessa ocasião realizou uma conferência sobre a genealogia das imagens das manifestações e de sua matriz antropológica.
Em sua apresentação falou sobre os braços ao ar, sobre os gesto da desobediência, indivíduos tomados em flagrante contra a regra social desafiando a ordem em vigor. Os jogos de força nas ruas e praças, efusão, apelo, recusa.
A obra de Speridião acontece nessa dicotomia, a rua e o ateliê, a manifestação e a introspeção, o gesto e a palavra. É sobre a guerra, o anarquismo, os corpos de liberdade. Mas é também sobre o amor, a amizade, sobre pintura e os versos tristes da existência mundana.
São pinturas escudo, formas antropológicas da vida social, pura expressão da tinta preta na tela sensível a qualquer respingo. São constelações de imagens que formam um enigma.
A produção de Speridião parece estar comprometida em deixar uma mensagem para um futuro longínquo, um futuro fictício cuja sociedade poderá, quem sabe, entender o que se passou nos remotos anos de 2000.
O Brasil vive um momento sensível e a arte se encontra ameaçada pelas intervenções de grupos conservadores, não é redundante mencionar Mario Pedrosa e sua célebre frase “A arte é o exercício experimental da liberdade” publicada em artigo para o Correio da Manhã em 1968. Fiel à sua concepção de que é impossível separar arte, revolução e política, Pedrosa acreditava que tanto para o fazer artístico quanto para o processo revolucionário, a liberdade e a busca por novos caminhos são pré-condições fundamentais”.
“Quilômetros” celebra a liberdade de movimento, do encontro entre desejos expressivos. Em tempos de polarização de ideais, qualquer passo em direção a liberdade é uma guerra vencida.
Nas nossas inúmeras trocas de mensagem que viajavam na velocidade da luz entre a Sé e a Rua Jogo da Bola, no Morro da Conceição (RJ), discutimos toda sorte de assuntos, ora em tensão, ora experimentando a parte macia da vida, como ele costuma dizer. Sempre com afeto e com a sinistreza da vida.
Assim é Speridião, corpo e obra, ora um radical, ora aquele que cita Fernando Pessoa. Ora encarnado no grito de fora Temer, Bolsonaro, Crivella, ora tomado pelas canções de Nick Cave, George Harrison e Novos Baianos.
Seja qual for a sintonia, o volume está sempre no máximo.
Se aproxima a data da abertura de “Quilômetros”, todos os ofícios se embaralham e se sobrepõem, como as telas no seu ateliê.
Falta ainda o adesivo na parede. Coloca adesivo não, eu escrevo na mão, no carvão e no coração.
Já é? Já é. E que assim seja.
novembro de 2017
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2016
O curador do Instituto PIPA Luiz Camillo Osorio, conversou com Gustavo Speridião – finalista do PIPA 2016 – sobre sua formação, processo produtivo, a importância da experiência pictórica em suas obras e os desafios que surgem para um trabalho político se inserir no mercado de arte.
para ler a entrevista publicada no site do Prêmio: https://www.premiopipa.com/2016/09/conversa-com-gustavo-speridiao-por-luiz-camillo-osorio/
Conversa com o finalista Gustavo Speridião, por Luiz Camillo Osorio
1 – Gustavo fale um pouco sobre sua formação. Sei que estudou na EBA-UFRJ, uma escola mais tradicional que vem passando por algumas mudanças nos últimos anos. Como foi este período e a convivência com a geração de alunos que esteve lá no mesmo momento que o seu, uma vez que parte importante do que se leva de uma escola de arte são as relações que se constituem ali dentro.
Eu comecei em 1997 cursando História da Arte na UERJ (Licenciatura) e durante 3 anos cursei as duas universidades ao mesmo tempo. Eram cursos diferentes que se complementavam em prática e teoria. Na UERJ, alguns professores foram muito importantes para minha formação: Gustavo Schnoor, Cristina Salgado, Roberto Conduru e Vera Beatriz. Mas foi na EBA-UFRJ que me formei e fiz também o Mestrado em Artes Visuais (PPGAV-UFRJ) e onde passava mais tempo por causa do atelier (Pamplonão).
Quando entrei na UFRJ, ocorria a greve nacional das universidades (1998). Na UFRJ a luta era também contra o Reitor imposto por FHC: Vilhena. A Reitoria estava ocupada. Vi a tropa de choque do lado de fora e os estudantes dentro da Reitoria reunidos fazendo assembléia para decidir “o que fazer”. Foi uma imagem importante para mim. Logo depois comecei a me organizar como militante e me tornei trotskista e passei a lutar pela revolução socialista mundial.
O Pamplonão, era um lugar muito destruído. Caiam pedaços do teto, alagava com facilidade e haviam pulgas, ratos e urubus freqüentando o local. Não havia banheiro nem água. Eram precárias as condições dos cursos de Pintura/Gravura/Escultura. Foi aí nesse “porão” que a universidade esqueceu da Eba, que se formaram muitos artistas como Pedro Varella, Carlos Contente, Carolina Dalmeida, Rosa Antunes, Julia Cseko, Risoflora, Lara Lima, as pessoas da chapa para centro acadêmico “Da Lama ao Caos”. Produzimos cartazes políticos/dadaístas e os nossos embates não eram apenas por mais verbas, reformas e bandejão. Nós todos, cada um da sua maneira, lutamos também por mudanças na idéia de um curso para formação de artistas, por atualizações e também para combater ideologias artísticas reacionárias (e que ainda existem por lá) que defendem um tipo de Academia Imperial de Belas Artes.
Foi na EBA que vi artistas em períodos diferentes com produções diferentes. Pedro Sanchez, Andrei Muller, Flávio Vasconcellos, Karina Toulois, Carlos Contente e Thiago Pitta, Pontogor, Vijai Patchineelam, André Amaral, Guga Ferraz, Alexandre Vogler, Bruno Miguel, cada um em sua busca em seus grupos, varias pesquisas experimentais combinadas e resultados diferentes, com sucata, lixo institucional, com carimbos, guitarra, sons, adesivos, estêncil, lambe lambe, xilogravura, litografias, spray, lonas, pinturas grandes, pichações, vandalismo estético, telas esticadas diretamente na parede, e foi por ai que eu aprendi muita coisa. Foi um ambiente “meio ocupação” e justamente por isso mais “livre” e com disputas ideológicas que deixaram tudo mais divertido e pudemos explorar muito mais possibilidades na produção. Eu tive excelentes professores nesse período: Julio Sekiguchi, Suzi Coralli, Chang Chi Chai e Carlos Zilio.
2 – Você foi assistente do Zílio. Um pintor que teve uma trajetória marcada tanto pelo enfrentamento político na ditadura, pela pesquisa acadêmica iniciada na França durante o exílio e, principalmente, pela dedicação ao trabalho pictórico, à luta diária com a tela, as tintas, a história da arte e a necessidade expressiva. O que significou a convivência no ateliê com este artista na sua formação.
Foi uma honra trabalhar e conviver com um militante e um artista revolucionário que admiro profundamente.
Em 2002, quando era estagiário no MNBA, li o livro do Zilio “Arte e Política” e achei a entrevista com ele muito impressionante, pela posição política radical na arte e na luta de classes. Não sabia que ele era professor na EBA. Um dia na primeira aula com o Julio Sekiguchi, ele pediu uma lista de artistas brasileiros preferidos, escrevi Goeldi, Iberê, Zilio, Guignard, Amilcar de Castro. Tempos depois fui chamado para trabalhar como assistente no atelier da Rua das Palmeiras. No primeiro dia de trabalho estava o Felipe Barbosa e o Carlos Zilio retirarando uns bancos pesados de bonde e os cavaletes de pintura do Iberê Camargo que ainda estavam lá. Ele disse que o trabalho no atelier seria pesado e uma das primeiras frases que ouvi foi “O único que se libertou com a revolução industrial foi o cavalo”.
Não falávamos muito de pintura. Falávamos mais de política. Aprendi sobre os anos sinistros. Sobre os tempos de DCE e do Mario Prata, da clandestinidade e da prisão. Disse a ele que era trotskista… Ele riu e disse que apesar de tudo, quem derrotou o nazismo foi Stalin. Eu disse que a URSS derrotou o nazismo apesar do Stalin e assim iam as conversas. A minha formação com Zilio foi por aí. Ele contestava diversas vezes a minha opinião e atuação política e confrontava a questão da liberdade artística com os métodos bolcheviques. Debatemos sobre guerrilha ou movimento de massas. Marx ou Wittgenstein. Ouvia sobre os debates que teve com Ferreira Gullar e principalmente o que significou o fim da União Soviética. No meio disso aprendi algumas coisas sobre Barnett Newman e Cézanne, mas queria saber mesmo é da revolução, como foi e como será, talvez.
Aprendi também sobre as mudanças na tática e na estratégia, de sua militância “bauhaus” através da educação artística nos cursos aqui do Rio. Ouvi muitas histórias das conversas com Mário Pedrosa e das aulas com Iberê Camargo.
O Zilio tem uma maneira ácida e irônica de analisar a realidade. Muita coisa desse comportamento eu vejo no meu trabalho artístico.
3 – Sua pintura está atravessada por uma urgência e um ruído urbano que em alguma medida contrasta com o tempo convencional da experiência pictórica. O ateliê versus a rua. Como você vê o lugar da pintura na sua obra e em que medida ela é importante na sua poética e na política inerente a ela.
A princípio, eu trabalho coma produção de uma imagem. Imagem em movimento, impressa, apropriada, pintada, escrita, desenhada. A pintura; tinta sobre tela, é suporte mais utilizado para este trabalho com a imagem por diversos fatores práticos de produção de imagem bidimensional, mas é na carga histórica e conceitual que sua importância está colocada pois nela estão acumulados séculos de discussão sobre o poder da imagem para a humanidade. Sobre este suporte convencional são criados meu jogos poéticos de idéias e formas. Mas o motivo pelo foco na pintura não é o teórico apenas.
Eu busco na pintura a essência de onde tudo começou: o desenho, a abstração de uma idéia. É o rabisco no papel. É a pintura na caverna. É um “Existir”.
4 – O que te move no seu processo produtivo? Para quem fala sua obra?
Essas perguntas são tão importantes e eu não sei responder nenhuma delas.
5 – Como lidar com uma ambição política que quer mudar tudo hoje e um compromisso da arte em ir além do agora, em resistir mesmo ao presente? Como falar para o seu tempo sem reduzir sua potência expressiva à ilustração de causas pontuais? Há algum dilema dessa ordem no seu trabalho cotidiano?
Essa questão é muito interessante. Existe esse dilema sim entre trabalho panfletário e um trabalho mais abrangente na minha produção. Prefiro mais o panfletário. Às vezes, por ser extremamente específico ilustrativo e pontual pode surgir algum mecanismo que o torna interessante. Todas as lutas pontuais do nosso cotidiano contêm dramas profundos da existência humana.
Mas também questões oníricas, poéticas e frívolas da vida me interessam tanto quanto uma nova sociedade socialista.
o importante nesta questão é que para mim a ambição de mudar o mundo, de destruir o capitalismo e construir um mundo socialista não é atraves de poética e sim da luta de classes, direta, crua, bruta, com greves, ocupações, conquistas de direitos, autodefesa, derrubada de governos, tomada de poder.
Também não acredito nesse dilema temporal. Todos nos vivemos o nosso tempo e a noção de uma criação artística atemporal é um idealismo contemporâneo. Esse compromisso de ir além do aqui e do agora é uma invenção. Não acho que é uma verdade a arte ter que ir além do agora. Acho que é possível sim tentar expressar com menos atraso as demandas de nosso tempo atual. Toda geração tem sua poética, sua estética, marcada de alguma maneira pelo cotidiano.
6 – Quais os desafios que surgem para um trabalho político se inserir no mercado de arte?
Tanto faz um trabalho de arte político anticapitalista, revolucionário ou reformista, todos têm a tendência, já constatada historicamente, de serem absorvidos pelo capitalismo, que é flexível o bastante para fagocitar tudo que é superficialmente antagônico a ele.
Os artistas protestam, assumem posturas políticas, através de sua produção artística. Isso são sintomas de uma crise política crescente no mundo. É um efetivo meio de protesto na esfera da idéia, na esfera do subjetivo, mas não da ação objetiva pois será diluído no oceano corrosivo da cultura de massas.
Difícil para o capitalismo é fagocitar ações como greves gerais, poderes duais e movimentos revolucionários por exemplo.
7–Você concorda com a sentença bastante repetida ultimamente de que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?
Não concordo. Concordo é com a frase antiga: Socialismo ou barbárie.
O capitalismo não é um sistema eterno e natural. É justamente ele que irá acabar com a nossa espécie se não for destruído já.
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2016
PUNHAIS, FLORES, TOCHAS, AMOR, ENTRE OUTROS NOMES PARA A UTOPIA
texto de Izabela Pucu sobre a exposição A LÁGRIMA É SÓ O SUOR DO CÉREBRO. Centro Cultural Hélio Oiticica (Rio de Janeiro, Brasil)
Outro dia disseram a Gustavo que ele parecia ter vindo de outro tempo, do passado. Desconfio que as vezes ele mesmo deve se sentir assim. Gustavo é herdeiro de questões antigas, digamos, com as quais se comprometeu ao percorrer a trilha aberta na arte brasileira em direção ao movimento concreto e ao construtivismo. Nesse percurso, que ele refaz à sua maneira, essas questões se atualizam de forma muito particular.Nesta exposição a palavra de ordem é conflito: seja do artista com a História da Arte - o apagamento dos fantasmas, como diria Carlos Zilio, seu amigo e mestre - ou do jovem militante que se emociona diante do mundo que também o revolta. Essa divisão simétrica do sujeito é mesmo algo antigo, resquício de um mundo partido, bipolarizado pela Guerra Fria, mas que não deixa de nos assombrar, como os fantasmas da pintura, nos confrontos espalhados por toda a parte, nas guerras que têm lugar no oriente médio, na memória do emblemático 11 de setembro de 2001, que instituiu o fim da História, ou o presente, de onde creio virem as questões que o atormentam.
Essa tensão histórica, digamos, dialética, se faz sentir na contraposição espacial entre as telas Paisagem Russa e Pintura Americana, e em Gráfica 2, 3 e 4, telas-muros feitas com cartazes de agitação colados. Presas em ângulos entre o teto e o chão essas pinturas acionam o conflito verticalidade x horizontalidade. Articulam o gesto canônico de Pablo Picasso, que colou pedaços de jornal em suas telas, ao invés de representá-los, ao ato radical de Robert Raushenberg, que pintou sobre a sua própria cama - o plano flatbed - fazendo da pintura uma superfície semelhante a tampos de mesa ou quadros de aviso, sobre os quais espalhamos coisas, informações de forma caótica ou organizada. Não se trata de um espaço de representação, mas sim de uma superfície em continuidade com o trabalho e a vida, sobre a qual procriamos, concebemos, sonhamos, como diria Leo Steinberg.Nos vídeos da série Nuvem, registro de intervenções realizadas em 2004 e 2005, vemos a nuvem-cubo pintada sobre as pilastras de concreto do viaduto da Perimetral, que Gustavo avistava da janela de sua casa, no Morro da Conceição. É curioso lembrar que essas pilastras, erguidas com base no mesmo impulso moderno, racionalista, que a nuvem-cubo vem questionar, agora ruíram, devolvendo à nuvem sua natureza fugidia, informe, na sobreposição de projetos de cidade que por fim reiteram esse mesmo pensar.
Na série Estudos superficiais, integrada por cerca de 90 fotografias e um filme, exibido em sessões programadas ao longo desta exposição, o mundo construído pelo ser humano revela sua beleza nas formas abstratas, em texturas vistas de perto, no olhar pelas frestas e intervalos, no pulsar, nos detalhes por onde escapam também seus avessos cheios de contrastes.Com a intimidade e o descompromisso de quem escreve em caderninhos, Gustavo desenrola metros e metros de tela para dar lugar a uma palavra, a uma frase, traçadas com precisão poética - no limite entre o nada de sentido e o tudo - numa geometria precária e diagonal, que nos desordena. Rasura livros para reescrever outra história da arte, seleciona entre imagens da revista Life seus Retratos de combatentes, tomando como estratégia sua conhecida ironia, que não é nunca cínica, mas sim existencialista até mesmo trágica. Ironia que às vezes soa infantil descamba para o panfletário, mas que ganha consistência quando Gustavo encara corajosamente o desafio de articular referências cuja proximidade não é necessariamente evidente - Malevitch, pichação de protesto, caricatura, Amilcar de Castro, cartazes Russos, Mario Pedrosa, Basquiat, Fernando Pessoa, Trotsky, anarquia.
Quando assume a responsabilidade de não fazer da arte mero reflexo, seja do mundo ou de si mesmo, e de tampouco apostar na sua autonomia estética sem um sentido público, como desafiara Mario Pedrosa, pois “a arte não é reflexo de nada; ela deve ser uma força decisiva entre outras forças no contexto cultural-social onde medra”. Esse desafio lançado por Pedrosa, aceito por Gustavo, me parece revestido de uma radical atualidade.Não fazendo distinção entre a militância partidária e a arte como forma de vida, Gustavo tenta extrair, sem palavras de verdade, um sentido político para os seus dias. Toma o conflito como forma de trabalho a um só tempo objetivo e subjetivo, braçal e intelectual, emocional e racional, afinal, como muito bem definido na frase que dá nome a essa exposição, “A lágrima é só o suor do cérebro”.
Desse conflito nasce tudo o que vemos nessa exposição. Se acendem as palavras que nos fazem arder como tochas, que nos cortam como punhais afiados. Caem sobre nós, com generosidade terrível, imagens que nos enchem de esperança e amor, como flores, entre outros nomes para a utopia.
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CANADA / Montreal / Imagine Brazil 2015
Les règles du jeu | The Rules of the Game | Conversation | IMAGINE BRAZIL | DHC/ART | Phi Centre
2015
Avec Sofia Borges (artiste, São Paulo), Gustavo Speridião (artiste, Rio de Janeiro), Gunnar B. Kvaran (directeur, Astrup Fearnley Museet), Hans Ulrich Obrist (codirecteur, Serpentine Galleries).
Animée par Cheryl Sim (commissaire, DHC/ART Fondation pour l’art contemporain)
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The Rules of the Game: A conversation about the exhibition IMAGINE BRAZIL
dhc-art.org/imagine-brazil-rulesofthegame/
With: Sofia Borges (Artist, São Paulo), Gustavo Speridião (Artist, Rio de Janeiro), Gunnar B. Kvaran (Director of Astrup Fearnley Museet), Hans Ulrich Obrist (Co-Director of Serpentine Galleries).
Moderated by Cheryl Sim (Curator, DHC/ART Foundation for Contemporary Art)
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2015
ArtReview
september
page 104 to 110
An Interview
by Oliver Basciano
Rio de Janeiro-based Gustavo Speridião's work harnesses painting often hung off stretchers, in which text and abstraction and pictorial representation freely intermingle) to, variously, photography, collage and drawings, often featuring words, pictures and mark-making atop existing media. As a body of work, it is an unashamedly polemical but nonetheless often humorous and cheeky response to prevailing capitalist hegemony and the free market economy. The preceding pages contain a project the artist has created for ArtReview.
ARTREVIEW Where do the images you have used here come from? Are the slogans of your own making?
Or are they direct quotes?
GUSTAVO SPERIDIÃO These photos were taken by me in Berlin, at the beginning of the global economic crisis in 2008. The slogans are my creations, based specifically on the writings of Marx, Trotsky and Joseph Conrad.
AR The project for ArtReview is similar to an earlier work, The Great Art History [2005-13], in which images from the Life magazine archive are drawn and written on. But here you took the photographs yourself.
What is the relationship between the two projects?
Gs The use of poetic interventions (words, drawings or blotting) over the archive images is a constant feature of my work, but as you say, in this instance all the images are of my author-ship. Nevertheless, my research does not concentrate on the origin of the images. I'm not seeking a debate over authorship of the images; what interests me is the possibility of altering the image/word relations.
AR I've seen The Great Art History as both a wall work (at the Lyon Biennial in 2013) and as a book (at an exhibition Maria Montero curated in 2014 at Luciana Brito Galeria, São Paulo). Does the context of publishing your work as a project within a magazine have an effect on it? Was it something you considered?
Gs I think that is a great question. I'm only taking this job, for a commercial magazine affirmative of the global art market, so I can send out my political message: DESTRUCTION OF THE BOURGEOISIE. FOR THE END OF ALL CLASSES. TO FREE HUMANKIND FROM ALL FORMS OF OPPRESSION. WE ARE ALL CLOUDS.
And also to show the image of Marx and Engels, still not much appreciated by the bourgeois and their intellectuals. Of course what you will find in these preceding pages is an attitude of intentional propaganda, just as the magazine is propaganda for the neoliberal cultural market.
I see this space as if it were the wall of a business centre ready to be tagged.
AR Does the neoliberal cultural market consume every-thing, even protest against it, though? Can you resist it?
Gs I find that yes, the cultural market (not only in neoliberalism) consumes everything; for beyond being profitable, the acceptance of rebels strengthens important concepts of bourgeois democracy, like freedom of expression and the autonomy of the artist, which are advanced and very progressive concepts of the modern era. To accept opposition is a sophisticated concept and a more efficient means of ideologically winning people over for capitalism (ultimately ideas, not armies, uphold systems and regimes). The only form of censorship in which the art market engages is that of sales; if he or she does not create profit, the artist will not exist. Personally, I see myself as a visual arts worker, and therefore I have both the market (fairs, galleries and collectors) and the state (public grants/competitions, museums and universities) as my 'bosses'. In relation to culture, the bourgeois state works in partnership with the market, and it's increasingly difficult to separate the two. The result is public money for private ends. It is not possible to resist this gigantic political and economic mechanism by culture alone. But the market sees profit and the public (the spectator) sees the poetics. So I think that resistance is in this relationship with the spectator. Resistance is possible in the domain of creation: by not submitting one's own poetics to the wishes of the market; by not being alienated from one's own role as an individual in history; by not accepting any form of censorship and constantly denouncing it when it occurs; and by always being on the side of the only class that has the means to revolutionise the world and therefore art: the working class.
AR Your recent show at Anita Schwartz in Rio de Janeiro was hung interestingly - some works were framed, others pinned to the wall. There was a
provisional nature to it, rather like the haphazard scanning in this project. What was the thinking behind this?
Gs Just as I have used the raw canvas on the wall, to make evident the support, with no mechanism of making up the object, such as chassis or frames, here I have used the scanner to make evident the materials used - photographs, photos, pencil and pen - and to distinguish my work from the rest of the magazine, from that clean' and 'no edges' aesthetic standard of the regular visual programming. It indeed works in a haphazard way, with a zine aesthetic.
I often seek the rawness of the materials I work with, with no adornment.
AR How does the political history work alongside the art history?
Gs In my opinion, all art history is actually a political history of art also, yet it is not called so because there is an idea (a wrong one) of autonomy in the aesthetic sphere. The current concept of art is still the art concept of the bourgeois: objects or attitudes of commercial value. The artistic avant-garde only appears after the political vanguards. Art history is the history of class struggles, as well.
AR Can art be an effective means of protest?
Is this an aim with your work?
GS Art is an effective means of protest against the system, as long as we understand the limitations of the term 'effective'. Artists do protest, and take on political stances, through their artistic production. These are symptoms of political crisis. It is an effective means of protest in the sphere of ideas, not in the sphere of action. Yet there is a tendency, historically observable, in which this kind of protest through art is absorbed by capitalism, as it is flexible enough to devour like a phagocyte all that is superficially antagonistic to it. What is much harder for capitalism to phagocytically devour are actions such as general strikes, alternate means of exerting political power and revolutionary movements.
I believe that a work of mine that contains a protest (the one herein as an instance) is no more than a sign of indignation with reality. I believe that this feeling that permeates my works will be more effective using political tools, not only aesthetic ones, that can bring about action.