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ESTUDOS SUPERFICIAIS, 2013.
51'23''
filme digital de 51'23''+ 93 foto-sequências (60x60cm)
Prêmio Funarte de Arte Contemporânea 2014, Galeria Mario Schemberg, Funarte São Paulo, Brasil
ATLAS
O mundo como enciclopédia. Afinal, qual dispositivo moderno melhor cumpriu esta função de tudo conter? O conjunto de livros? O cinema? As Arcadas de Paris? O Palácio de Cristal? As Exposições Universais? Hoje é corrente perceber o quanto Walter Benjamin detectou esse sintoma, ao coletar tudo o que parecia existente no seu inacabado projeto das Arcadas, como se nelas um microcosmo, um diorama do fetiche, se nos oferecesse em uma centena de passos, tudo. Mas esse tudo / todo tinha suas regras e, principalmente, seu preço - sendo este, aliás, a maior de todas elas. Assim como o saber, o desejo se faz vestal do capital, perfazendo a peculiar gênesis da imagem moderna. Temos, portanto, dois princípios em jogo a lhe configurar: o seu valor de uso, que outra coisa não é, senão o tipo de poder convocado para a imagem; e a edição, construtora do seu sentido. Não há, portanto, política de imagens que também não seja uma política de edição. Em tempos de hiperexposição e tentativa de construção de um conteúdo globalizado, a obra de arte vê-se exposta à estranha urgência de responder com objetos e imagens a uma demanda cada vez mais competitiva e coercitiva, incorrendo, muitas vezes, em uma “estética do comprometimento” marcada pela linguagem pasteurizada e conciliatória. Refém de um ajustamento passivo ao sistema, o artista adiciona um “toque local” – e “pessoal” – a certos moldes tidos como universais (e este universal é determinado precisamente pelo princípio de edição), gerando, assim, trabalhos que reificam ingenuamente o elogio conformista ao “glocal”, à precariedade, a uma pseudo micropolítica do “possível” e do utópico. Estudos Superficiais, de Gustavo Speridião, escolhe o caminho oposto a esse. Seu interesse pelo cinema, que remonta à câmera-olho de Vertov, aqui, torna-se uma câmera-corpo. Isto, porém, não se ilustra numa citação direta ao corpo, mas naquilo em que o desejo escópico de se apropriar do mundo faz-se presente na sensação de sequência de um fôlego só. As imagens sucedem num caudal em que a reivindicação de sua autoria não é um apanágio do artistaindivíduo, isto é, do artesão que detém a exclusividade no manejo do ofício, mas do artistasujeito, ou seja, daquele que conquista sua emancipação ao querer imprimir os seus códigos, a sua experiência sobre as contingências do mundo. É um caso de absoluto: não de um absoluto metafísico, e sim de uma porosidade existencial e, consequentemente, política. Política, aliás, também não é aqui uma denominação abstrata ou um jargão do meio; é o engajamento anticonformista que, em sua positividade crítica, em vez de conteúdo metafórico ou resignado, à beira do alegórico (pois a alegoria anda de mãos dadas com o conforto de asserção da “utopia”), coloca-se como experiência concreta e real calibrada no testemunho direto dos dilemas testemunhados mundo afora. A intervenção sobre imagens, citações e colagens existe ora - ou simultaneamente - como gesto iconoclasta, ora como exame da tessitura histórica de uma linguagem (seja pintura, filme, ideologia, etc.), ora como uma espécie de inusitado fluxo da consciência joyceanoconstrutivista. Assume-se a materialidade não só física, mas também histórica dos objetos e mecanismos linguísticos e discursivos constituintes de nossa ideia de “Arte”, que, no fim, nunca existiu apartada da superestrutura sob a qual vivemos, mas na qual não nos sentimos necessariamente – ou de modo algum – confortáveis. O que são, portanto, esses Estudos Superficiais? Um caderno de anotações, um diário de viagens, um museu de um homem só? Um pouco de... tudo, eles devem ser entendidos na mesma medida como uma extensão de outro trabalho do artista: O circo dos sonhos, realizado em coautoria com os membros do coletivo do qual participava na época: o Gráfica Utópica. Se o Circo... guardava um quê de amálgama de filmes das vanguardas históricas com cinema b, desbunde e performance guiada pela aparição recorrente dos seus “personagens”, em Estudos Superficiais, estes são dois e um ao mesmo tempo: o mundo e sua imagem. Conforme dissemos acima, um não existe sem o outro, e o fluxo enfatiza a ideologia que lhes é inerente. A questão, não obstante, é de o poder de resistência da obra, enfim, a ideologia da imagem, segundo insistimos, afirmar-se na sua indisciplina ao sistema que frequenta, deixando, em certos momentos, em aberto qual o seu tipo de pertencimento a ele. Gustavo não fetichiza nem edulcora - sob a máscara de um enfant gâté, como repetidas vezes se topa pelo caminho - o sistema e o circuito; daí o ele desconectar a relação entre trabalho, transferência - inclusive em seu sentido psicanalítico - e posse, usualmente definidoras da condição da obra de arte por meio de sua disponibilidade pública aberta. Nesse aspecto, a apropriação e o livre poder de circulação tanto da imagem quanto da obra em si entrelaçam-se, conferindo, pois, uma materialidade outra à obra, pois ela vai além do dispositivo fílmico - o objeto-filme propriamente dito - e incorpora em sua consistência os seus mecanismos de veiculação e partilha, como que admitindo sua viralização. Não deixa de retornar ao filme a sua largueza e amplitude visuais, no modo como esta enciclopédia do mundo volta para seu objeto original de referência.
O teatro da história. O teatro da história visual. Estudos Superficiais é uma hipótese: colocar Rodchenko na mesa de edição de Entr’acte ou do Ballet Mécanique. Afinal, o que resta de específico na imagem quando ela é colocada no grande saco da história, quando, em um caso como este, todas as diferenças são reduzidas à tábula rasa da classificação (pois hoje, todas foram reduzidas a serem apenas modernas, dizendo subliminarmente, com isso, que elas estão acabadas)? A resposta pode ser dupla: radicalizar mais do que a temporalidade ou efemeridade (seja da experiência ou da obra que deveria prolongá-la, incidindo, com isso, em sua condição produtiva), radicalizar a aterradora e inexorável historicidade - ou perda de historicidade - das coisas; ou então reinserir seu potencial como uma suspensão narrativa (se elas reencenam uma visualidade, não é como paródia, e sim como uma repetição - mais uma vez, admitindo-se sua conotação psicanalítica – como situação de desrecalque). Nesse caso, diria de um “desrecalque coletivo” reprimido nas diversas elegias da modernidade, hoje, mais do que nunca, reverenciadas.
Se a guia das imagens se constitui em analogias visuais que vão gradualmente configurando anamorfoses narrativas, trata-se, não menos, de uma história que, ironizando seu pilar hegeliano, sobrepõe os objetos arcaicos, anteriores ou à margem da história com sua persistência no presente. Do mesmo modo que o tempo discursivo da história é posto em jogo, isso se torna coextensivo ao tempo “natural” da edição cinematográfica. Curiosamente, defrontamo-nos com o necessário anacronismo de uma encruzilhada fundadora da modernidade: a manetiana desorientação do espectador. Nada mais imperativo, em tempos de conteúdos pautados.
Guilherme Bueno
A forma que olha Speridião: o plano, o círculo, o corte, a janela, o degrau e a nuvem.
(Sobre os Estudos Superficiais, de Gustavo Speridião - Parte 1).
Guilherme Gutman
Intro.
Esse filme é de 2013, mas se realiza há muitos anos. Este texto incide sobre os seus primeiros cinco minutos. O filme contém muitas idades e realiza o inventário de tantos outros acontecimentos. Ele é pensado na mesma medida em que é atuado, sendo ambos – pensamento e ação – amadurecidos pelo esforço e pelo acaso que, afinal, a vida apresenta a Gustavo Speridião. A sua posição em relação à vida – pois ele se deixa afetar por ela – é tudo menos espectante: Speridião busca o seu objeto e molda, a custos altos, sua própria forma de viver. Quando debruça o seu olhar sobre as coisas, Speridião é um espectador especial que caminha atento, que elege e captura fragmentos do que, pelo lado de dentro, impõe-lhe uma série de deslocamentos. Nesse movimento, forma-se um amálgama que, no limite, não diferencia o que se cria daquilo que se vive. Diante da riqueza de elementos do conjunto, sem que se abra mão de uma visão mais ampla sobre as grandes extensões verticais e horizontais da obra, vale multiplicar em partes este texto sobre um filme que é plural. Esta obra, ainda que feita de restos daquilo que se viveu, não tem sobras; tudo que está nela deve permanecer, tal qual o que pode se encontrar nos trabalhos de um Bárrio. Há no filme elementos poéticos, mas não é essa a sua marca decisiva, porque se há nele a presença de um sublime embalado pela bela trilha sonora, esta se mistura aos imprevisíveis ruídos da rua. E, assim, obtêm-se o paradoxo e a polifonia de um sublime mundano ou de um mundo no qual o belo é filho da mácula. Há elementos poéticos no filme? Talvez, alternativamente, o filme seja sobre “não haver elementos poéticos”, já que tudo é poesia, dependendo de quem vê, elege e captura. Há certamente muita beleza nesse filme, mas a questão fundamental passa a ser a de como ela é obtida. Podemos pensar que ela tem como ponto de partida as abundantes sequências de formas geometrizadas, nas quais ela – a bela e insistente geometria – caminhando, atravessa a polis para chegar, por caminhos vicinais, a uma espécie de núcleo da coisa. Speridião caminha pela periferia das cidades e, com o olhar tal qual um diafragma de câmera, encontra algo sobre o que pousar seu olhar, produzindo a imagem que, de outra forma, teria ficado de lado. Mas como convencer-se de que esta obra atinge algo de real? Bem, é preciso se expor a ela, olhá-la e ser por ela olhado com a voracidade e a veracidade da passagem veloz da luz pelos mecanismos da máquina, que a fazem explodir plena nos olhos. A posição de espectador, logo, é insuficiente para uma experiência total: tendo uma vez visto o vídeo, passa-se a ser por ele olhado. E por tempo indeterminado. Esta obra tem, então, a sua própria temporalidade: ela começa antes do registro das imagens e prossegue, interminável, nos efeitos que provoca. Quanto tempo se demora para concluir uma obra? Iniciar um quadro não significa necessariamente já estar sobre a coisa. Há telas que demoraram 10 anos para ficarem prontas, ao passo que outras, permanecendo longamente no atelier, correm o risco de esticar demais a sua existência no espaço cativo; talvez, um pouco como um filho que fica morando com os pais e – já tarde – descobre que o seu tempo passou. Assim, Speridião vai acrescentando vida à tela ininterruptamente: riscando, rompendo a superfície, rabiscando, pintando por cima… Até que, para que ela exista, seja preciso soltá-la, libertá-la da área de trabalho, a partir da qual ela percorrerá o seu próprio itinerário. Este filme demorou 7 anos para ser concluído; Speridião fez longas caminhadas por 18 cidades para encontrar as suas imagens. Este primeiro escrito sobre os Estudos Superficiais incide sobre o segmento do vídeo que começa exatos 27 segundos antes do título, que surge tímido e sólido na tela negra, e termina com o corte, encarnado na tela pelas imagens, sons e cheiros sugeridos pelo açougue lusitano. O primeiro escrito termina, portanto, com o corte na carne, numa poesia que logo passa a ser outra. Como aquela de seus filmes – Os Inimigos (2008) – no qual se pode ler na tela: “O que eu quero são palavras cheias de fogo, de verdade e de cólera. Palavras afiadas como punhais, queimando como tochas. O que eu quero é jogar tudo isso ao público. Jogar com uma generosidade terrível, para que as pessoas peguem fogo, comecem a gritar, a correr (…)”. O segundo escrito – ainda por vir – começa, portanto, com os punhais e com as tochas, começa com a nossa disposição em afastar com as mãos - firmes ou trêmulas, não sabemos - a cortina metálica com a palavra “talho” pintada sem requinte, crua como a visão que necessariamente aguarda aquele que ultrapassar a soleira da casa de carnes – também metáfora do mundo, separando a vida que se fantasia da visão real dos corpos. Convém entrar. Mas não nos antecipemos. Vida misturada à obra. Quando se pensa sobre o modo como a vida e a obra de Speridião estão imbricadas, é difícil não pensar na posição adotada por Foucault em O Uso dos Prazeres: em sua perspectiva, só faria sentido investigar, constituir um corpus filosófico, intervir sobre a tela, formar uma obra, caso ela possa servir para que se pense a vida que se vivia em oposição à vida que se poderia viver.
Pensar sobre Ontem, hoje, amanhã (pintura de Speridião, 2011), para dobrar a vida sobre a obra e permitir que a obra reflua para a vida, ajuda a entender uma das fontes do trabalho de Speridião: com suavidade ou dureza, com generosidade ou raiva, ele estende uma forma de vida àqueles que se dispuserem a ver, digamos, o rasgo em suas telas (Fontana), ou ler, na fluidez espontânea das palavras e frases grafitadas na superfície da obra (Basquiat), o registro do vivido. São num mesmo gesto os escritos despudorados de banheiro e as páginas íntimas de um diário pessoal; o Speridião coletor de frases torna-se aí equivalente ao Speridião coletor de fragmentos do que foi vivido com amigos, em conversas, em viagens, nas relações afetivas, nas coisas que ele vê e escuta na urbi, orbe et mens. Mas de que modo a vida se combina à insistência das formas básicas em seu trabalho? Neste ponto, temos, a meu ver, um dos elementos-chave desse filme, em particular, e de sua obra em geral: o seu interesse pelas formas “não humanas” dá o contorno ao seu enorme interesse pelo humano. É de seu círculo, do quadrado, do triângulo, do ponto e da linha que brotam a vida; os seus Estudos Superficiais desdobram os sulcos dos giros cerebrais e esticam a lona, a pele e a película sobre as quais são derramados os sonhos e as angústias do abismo das cabeças. É essa a sua geometria. A vida entra e sai pelo rasgo na tela, pela abertura do obturador, até que a imagem toque o corpo. Na primeira cena do filme, um homem de turbante conduz o olho da câmera à câmara na qual se vê o objeto, concreto, geométrico, sólido, estático, ao lado de alguns degraus. Antes, esse homem atravessou as geometrias recortadas na pedra, passou por um quadrado branco sobre o fundo negro, numa construção em luz e sombra, até que apresenta com ênfase, em uma língua estranha, o tal objeto: um volume retangular. A voz do homem é forte, mas na ênfase com a qual a entoa também é desvelado o desconcerto de uma descoberta. Por um momento, é como se fôssemos estrangeiros penetrando os segredos de uma construção de enorme valor arqueológico, como tumbas ou termas. Mas é bem mais que isso. É que o homem sabe que o impacto da descoberta não se resume ao valor presente daquilo que se vê. E, olhando diretamente para nós, seus interlocutores, procura certificar-se, pela fenda oblíqua de nossos olhos espantados, se de fato pegamos no ar aquilo que ele descobriu: que uma forma básica e pura explode os limites do concreto, faz do sólido fluido e abre veredas à banalidade ou ao mistério da vida. Vê-se que Speridião conheceu a obra de Mira Schendel, que assistiu a Dziga Vertov e também a Chris Marker, que escutou Malevich, quando este, em De Cézanne ao Suprematismo, diz: “toda a força (...) vem da pulverização e da decomposição do objeto (ao contrário de sua plenitude)”. Há, nesse curto preâmbulo que antecede o título do filme, uma síntese daquilo que virá na sequência da obra: dirigimos o olho nú à forma básica e pura, tal como o Quadrado Negro Sobre o Fundo Branco (1913- 15), e somos olhados por sua superfície, vendo desprender-se dela a matéria gasosa, etérea e vaporosa de que a vida e a experiência humana na Terra são feitas. Tudo isso pode durar apenas um minuto, mas Speridião joga a sua vida toda neste minuto. Segundo diz: “Todos nós vivemos só uns minutos. O melhor está sempre num só minuto” (Os Inimigos). O objeto perdido. Há um enigma na imagem do homem vivo diante do volume sólido e estático; volume que permanecerá lá quando ele já tiver ido embora em definitivo. Quando será que ele vai sair de cena? Landscape3 . Quando ele será defenestrado: Hoje, Ontem, Amanhã? O que fica quando o objeto – a pessoa, a ideia, a tela – vão embora? Há a vida com e a vida sem, num trânsito permanente pela trama do contato, no mosaico do junto. O que resta, afinal, quando se acaba? Quando as pessoas se separam e quando já não se está mais perto? Como se lida com o que já foi e não é mais? No que se fazia, na aparência que se tinha, naquilo que se vivia junto. Quando as pessoas se separam – por um segundo ou pelo resto da vida – estamos mais próximos de uma das geometrias de Speridião: a do "talho", ou corte, que às vezes é na carne e às vezes é na tela. Corte que é anterior a cada nova e necessária separação. Talho que inaugura o rompimento, o vazio que daí advém e estabelece aquilo em torno do qual se passa a vida em busca e que, ao mesmo tempo, empurra para a vida em direção à região na qual realizará os seus enfrentamentos, recuperando e voltando a perder, indefinidamente, o objeto que carrega a promessa vã de uma mítica plenitude (Freud). No filme, o círculo surge muitas vezes: gelatinoso ou luminoso, metálico ou pétreo, cinético ou lunático. Aí, o corte é no olho, cindindo o olhar em dois: o que olha e aquele outro, a partir do qual nos sentimos olhados. É essa cisão do olhar que pode restringir a experiência a uma espécie de visibilidade do presente, quando poderia (deveria?) avançar em direção àquilo que não está lá e que escapa ao olhar domesticado (Didi-Huberman). Este objeto perdido não está na visualidade corriqueira, sensoperceptiva, daquilo que se vê agora; não apenas naquele espaço entre a quase consciência e as formações do inconsciente, mas também para além da arrebentação – como sugere a materialidade específica do registro fotográfico - portanto, numa materialidade que já fracassa, que já é faltante, que claudica por essência. Mar Egeu4 – entre o núcleo do Real e esse conjunto de sintaxes que está em relação estreita com o Simbólico (Lacan). De que substância seria então feito o objeto perdido? O que ficou do objeto fotografado? Em algum espaço virtual entre o objeto que "estava lá", a captura pela máquina, a impressão no papel fotográfico e na lembrança que Speridião tem do objeto? Talvez na memória fugidia, e que algum dia também se extinguirá por completo, de todo o processo de trabalho. Guardemos o minuto, que é o tempo de Speridião: aquela temporalidade mais etérea, que é a poeira, o pó, a fumaça, a nebulosa e o gêiser. Matéria de que é feito aquilo que resta, aquilo que já não é mais. A vida – dura e bela – surge como florescências da forma. Speridião olha as formas porque é olhado por elas. Esse é um dos pontos fundamentais do texto. A geometria de Speridião: círculo, quadrado, triângulo, ponto e linha dando origem - ou, ao contrário, formas na qual são reconhecidas as coisas da vida - ao mundo vegetal e ao mundo animal. Outra ideia fundamental: quanto mais a realidade é difícil, em muitos sentidos: social, de laços entre as pessoas, etc., mais o sonho, o poético, o "fora do mundo" precisa encontrar o seu lugar na obra. No caso de Speridião, retirar/fazer brotar dessas matérias duras (como o volume compacto e de linhas rígidas, apresentado pelo homem de língua estranha, na abertura do vídeo), per via de porre e per via de levare, tudo aquilo que nos atravessa e que não se restringe à contemplação do objeto. Uma fórmula: um sonho (imagens oniroides, devaneios, paraísos artificiais, imagens que retornam, reminiscências) que surge das formas básicas. Este primeiro escrito baliza a cena em que as imagens se dão. Neste sentido, temos os elementos básicos da geometria se Speridião: A) O corte (talho), que no escrito por vir apresentará a “carne do mundo” (Merleau-Ponty). A indivisível separação entre um corpo que vê (que, no limite, se vê vendo, e que, paradoxalmente, é objeto do mundo, a ser visto, mastigado e deglutido). B) A nuvem que é aquilo que se vê, quando o vazio é visto (Didi-Huberman). A vida está aqui. Da forma saltam as espécies vegetais, animais e os humanos com as suas pequenas coisas. C) O degrau, que é preciso subir, galgar, palmilhar, para se chegar a ver - o degrau é o volume de pedra, o quadrado, a matéria geometrizada. D) O círculo. O olho que vê é o olho que nos olha. E) A janela é o que se atravessa. As aberturas retangulares, o rasgo e a fenda. É por onde se entra, mas por onde é possível, também, se defenestrar. F) O plano (superficial). Superfície: suporte necessário para que a obra se aninhe. Pode ser a tela, mas pode ser o éter: o espaço mental, a concepção, etc. Coda. Speridião abre passagem e, na abertura, no retângulo a ser atravessado, no corte que é na carne ou na tela, encontramos aquele minuto, tão precioso quanto fugidio. Quando olhamos para uma obra de Speridião, comemoramos e rememoramos que estamos aqui e que o vazio inaugurado pelo corte, o espaço deixado, a superfície sugerida, seguem olhando-nos e, também, conduzindo o nosso olhar.
O núcleo da coisa pode estar nos espaços de transição entre os agrupamentos da “geometria spiridiana”, trabalhados na ilha de edição. Há apresentação de grupos e espaços de transição entre eles, que nos deixam numa espécie de incômodo. No incômodo, saimos da superfície estudada, pavimentada pelos agrupamentos. Nos espaços de transição já não temos o conforto do objeto a ser encontrado, já não sabemos onde procurar o círculo ou o degrau e nos sentimos simultaneamente perdidos e estimulados a encontrar o próximo fio. E sozinhos. No espaço de transição entre os agrupamentos, precisamos nos agarrar nas pedras, ou tatear as paredes, procurando uma nova saída no escuro. Nesse espaço, testamos e colecionamos tudo o que vemos dentro das imagens apresentadas, tentando fazer “pares”, como no “jogo da memória”, com a imagem seguinte. Lá, descartamos o que não reencontramos, guardamos o que se repetiu, para novamente comprovar se este é o caminho seguro, na imagem que virá adiante – até que, com alívio, tenhamos novamente o objeto em nossas mãos. Deixemos que Speridião nos mostre, por um pouco menos ou um pouco mais do que um minuto, aquilo que ele pôde ver e teve a generosidade de, pela fresta de um diafragma, revelar.
Guilherme Gutman
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