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2022
Manifestação Contra a Viagem no Tempo
Demonstration Against Time Travel
Curadoria | Curatorship Evandro Salles
19 de novembro de 2022 a 12 de fevereiro de 2023
November 19th, 2022 through February 12th, 2023
Centro Cultural Justiça Federal. Rio de Janeiro, Brasil.
A CONTRANARRATIVA POÉTICA DE GUSTAVO SPERIDIÃO
EVANDRO SALLES
1. DESCRIÇÃO DO SENTIDO
Em um plano – abre-se um amplo espaço de con- vergências e possibilidades poéticas.
Realidade e ilusão, tempo passado e tempo fu- turo, a inevitabilidade do agora. Linha, palavra, man- cha e silêncio. Erros, acertos, descobertas, destrui- ções, abandono, entrega, paixões, apropriações, revelações, revolução e classe operária. Sonho de libertação, a tragédia do agora. Como fragmentos de um corpo, surgem partes de diferentes siste- mas de linguagem, como instrumentos de aferição e construção poética. Aferição da veracidade da língua, da fala em construção no seu passo a pas- so entre vida e morte, entre inconsciente e razão, entre entendimento e pura entrega. A construção poética se revela então como fazer fundamental na elaboração psíquica e na razão mesma da arte, do fazer arte. Dupla função constituinte.
No princípio, há um método de abrir o plano ao acaso do inevitável, de silenciar as vozes rasas para que, do mais fundo, possa surgir o que dife- rencie na própria intenção o verdadeiro do falso. Como se fosse um chamado ritual à voz de Deus. Mas a voz que surge é a voz do dentro. Do den- tro do corpo, do dentro da memória, do dentro do tempo, do dentro do silencioso e do impalpável. Esse dentro onde é gerada a palavra verdadeira. De lá vem o vento que sopra a temporalidade do definitivo e eterno agora.
Então as falas se sucedem, improváveis e im- previstas. E o poema se constrói como um inven- tário onde cabe o mundo todo, cada coisa vivida (e vívida) do mundo. Toda e qualquer coisa, des- de que cada coisa seja colocada a partir de uma" "ordem disruptiva, uma ordem de instauração da verdade no seu sentido de legitimidade da fala in- terior, de sincronicidade com o real do agora.
Mas o atravessar do tempo com a aferição do inconsciente exige uma simplicidade espe- cífica e transparente. O pincel ou o lápis agem como uma faca, cortando a superfície do plano em gravações definitivas, irretocadas. Suas refe- rências históricas são explicitadas. Suas apropria- ções, reveladas. Suas palavras são ditas (e es- critas). Seus erros são incorporados ao lado de seus acertos. Nada há a esconder. Revelam-se as verdades cruas, as ilusões vãs ou as realida- des cruéis. Transitamos então pelos caminhos de nossa própria percepção. Entre o olho e o pensa- mento, transitamos entre o ver e a palavra, entre o olhar e a mente. Mas estas imagens são mais rápidas que o pensamento. Não nos iludem, mas nos trazem para diante delas próprias, de sua veracidade irredutível e essencialmente poética. Somos incorporados a essa linguagem. Ao vê-las, nos tornamos parte de seu alfabeto, de sua língua. Somos incorporados à sua contranarrativa, pois dela não damos seguimento (ou conta), a não ser no plano poético, a não ser como elementos de sua poética. Olhadores da fala. Ouvidores de ima- gens. Navegamos.
Nas articulações da imagem – a palavra. Sobre a palavra – um oceano. Navegamos. O espaço é pleno ao olhar, pleno ao capturar o olhador. Soletramos o Poema escalando o olhar que o articula. Linhas que se desdobram em oceano. Linhas, linhas, linhas. Manchas. Letras. Com elas, navegamos."
2.SOBRE DOIS FILMES
Em meio a um grande número de pinturas e dese- nhos, aqui serão vistos dois filmes extraordinários de Speridião: Estudos Superficiais, média-
-metragem de 2013 que levou vários anos sendo elaborado, e Time Color, curta-metragem de 2020. Vertoviano por excelência, Estudos Su- perficiais é um filme de sofisticada elaboração construtiva: não narrativo, planos desenhados entre contrastes e modulações musicais de luz e sombra. Cotidiano assombroso que se desdobra diante do olhar desperto pela extrema beleza das imagens. Já Time Color, ainda que seguindo o rigoroso olhar construtivo do artista, mergulha no estilhaçamento da narrativa e da imagem através da radical superposição de planos e vozes, o que o faz uma paráfrase da linguagem de rede. Fil- mes-pensamento que perpassam de forma ver- tiginosa a história do cinema, da fotografia e da arte contemporânea.
3. DESCRIÇÃO DO FATO
Manifestação Contra a Viagem no Tempo apresenta uma grande e vigorosa seleção da pro- dução recente de Gustavo Speridião. Reunindo pinturas, desenhos, colagens, filmes, e objetos, esta é uma mostra antológica de um artista denso e profícuo, fortemente inscrito nas raízes constru- tivas da arte. O construtivismo que – desde Male- vich – busca a “supremacia do sensível” e que, no Brasil, desde Wlademir Dias Pino faz aproximar em mútua convergência imagem e palavra em fusão poética. Este constitui o seu chão, por onde caminha e transita. E transita de forma surpreendente" "entre a pintura, o desenho, a construção da ima- gem fotográfica e cinematográfica, o universo grá- fico e o poema. Ancorando seu universo em fontes e práticas estruturantes do pensamento estético contemporâneo, bem como em uma rica aproxima- ção e troca entre arte e política, Speridão tem o poder de fazer interagirem na arte o pessoal e o coletivo, o íntimo e o público, o romântico e o dra- mático. Com pinturas de grandes dimensões, de até 6 metros de comprimento, e outras pequenas construções em papel, pano ou gesso de poucos centímetros, Manifestação Contra a Viagem no Tempo, de Gustavo Speridião, apresenta um artista único na plenitude de seu fazer.
4. DESCRIÇÃO DO TÍTULO
O título dessa exposição foi trazido pelo curador de uma colagem do artista que, sobre uma foto impressa em jornal de uma manifestação, escre- veu com tinta a frase Manifestação Contra a Viagem no Tempo. Trata-se, segundo o autor, de uma referência às alegações reacionárias e obscurantistas surgidas no discurso da extrema direita brasileira, glorificando períodos obscuros e ditatoriais da história recente do Brasil. Particu- larmente exemplar, esta abordagem poética com que o artista trata o episódio retira do campo da crueza política uma perspectiva poético-tempo- ral que desestabiliza e desaliena as mistificações reacionárias. Para enfrentar a desmemória de um falso passado, propõe e nos remete ao real do aqui e agora. Imagem e palavra se articulam na construção de um terceiro sistema de linguagem: o POEMA."
THE POETIC COUNTERNARRATIVE OF GUSTAVO SPERIDIÃO
EVANDRO SALLES
1. DESCRIPTION OF THE MEANING
In a plane – a wide space of convergences and poetic possibilities opens up.
Reality and illusion, past and future time, the inevitability of the present moment. Line, word, stain and silence. Mistakes, achievements, dis- coveries, destructions, abandonment, deliverance, passion, appropriation, revelations, revolution and working class. A dream of liberation, the tragedy of the present moment. Different language systems appear, just like fragments from a body, like instru- ments of measurement and of poetic construction. The measurement of the veracity of the language, of the construction of the speech in its step by step between life and death, between unconscious and reason, between understanding and pure deliv- erance. The poetic construction reveals itself as a fundamental making in the psychic elaboration, and in the reason of art itself, of making art. A func- tion that has a double constitution.
At first, there is a method of opening the plane of the surface to the inevitable chance, of silencing shallow voices so that what differentiates in inten- tion truth from false can appear from the deepest place. Just as a ritual calling to God’s voice. But the voice that appears is the voice from within. From within the body, within the memory, within time, within the silence and the impalpable. This within is where is generated the true word. It is where the wind that blows the temporality of the definitive and eternal now comes from.
So, the speeches succeed themselves, unlikely and unpredictable. And the poem is built as an inventory where the whole world fits, every lived" "(and vivid) thing of the world. All things – as long as they are put in a disruptive order, an order of instauration of truth in the sense of legitimacy of the inner voice, of a synchronicity with the present moment’s realness.
However, crossing time by measuring the un- conscious, demands a specific and transparent simplicity. The brush or the pencil act as knife. Cut- ting the surface of the plane in definitive engrav- ings, unretouched. Their historical references are clarified. Their appropriations are revealed. Their words are said (and written). Their mistakes are incorporated next to their achievements. There is nothing to hide. Raw truths, vain illusions or cruel realities are revealed. We transit through the paths of our own perception. Between the eye and the thought, we transit between seeing and the word, between the gaze and the mind. But these images are faster than the mind. They do not delude us, but rather bring us before them, before their irre- ducible and essentially poetic veracity. We are in- corporated to this language. When seeing these images we become part of their alphabet, part of their language. We are incorporated to their coun- ternarrative because we cannot follow (or account for) them, if not in the plane’s poetry, if not as ele- ments of its poetry. Gazers of the speech. Listeners of images. We sail.
In the articulations of the image — the word. Over the word — an ocean. We sail. The space is whole to the gaze, and it is whole when capturing the gaz- er. We spell out the Poem escalating the gaze thar articulates it. Lines that unfold in an ocean. Lines, lines, lines. Stains. Letters. We sail with them."
2. ON TWO FILMS
Among a great number of paintings and drawings, two extraordinary films by Speridião will be seen: Estudos Superficiais [Superficial Studies], a featurette from 2013 that was made over many years, and Time Color, a short film from 2020. Vertovian by excellence, Estudos Superficiais is a film of sophisticated constructive elaboration: a non-narrative film, with shots drawn between contrasts and musical modulations of light and shadow. An astonishing day-today that unfolds before the gaze awoken by the extreme beauty of the images. Although Time Color follows the rigorous constructive gaze of the artist, it dives in a shatter of the narrative and the image through a radical overlapping of shots and voices, creating a paraphrase of the network language. A cinematic think piece that vertiginously runs through the history of film, photography and contemporary art.
3. DESCRIPTION OF THE FACT
Demonstration Against Time Travel presents a great and vigorous selection of Gustavo Speridião’s recent production. Gathering paintings, drawings, collages, films and objects, this anthological show, reveals a dense and prolific artist that strongly inscribes himself in the constructive roots of art. A constructivism that – since Malevitch – searches the “supremacy of the sensible”, and that in Brazil, ever since Wlademir Dias Pino, approaches in mutual convergence word and image in a poetic fusion. This constitutes the ground on which he walks and transits. And transits in a surprising way between painting, drawing, the construction of the photographic and cinematographic images, the graphic universe and poetry. Anchoring his universe in sources and structuring practices of aesthetic contemporary thinking, as well as in a rich convergence and exchange between art and politics, Speridião reveals in art the power of interacting the personal and the collective, the intimate and the public, the romantic and the dramatic. With large scale paintings of up to 6 meters long and other small constructions of a few centimeters on paper, fabric or cast, Demonstration Against Time Travel, by Gustavo Speridião, reveals a unique artist in the fullness of his practice.
4. DESCRIPTION OF THE TITLE
The title of this exhibition was translated by the curator from a collage by the artist, who wrote in paint the sentence Manifestação Contra Viagem no Tempo [Demonstration Against Time Travel] over a printed photo of a demonstration in a newspaper. According to the author, it refers to reactionary and obscurantist allegations that emerged in the speech of Brazilian extreme right, glorifying dark and dictatorial periods of Brazil’s recent history. The poetic approach in which the artist deals with the episode is particularly outstanding, removing a time-poetic perspective from the rawness of the political field that destabilizes and reconciles the reactionary mystifications. To face the lack of memory of a fake past, he proposes and leads us to the realness of the here and now. The image and the word articulate themselves in the construction of a third language system: the POEM.
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